Duzentos e vinte e seis

porJoão Mineiro

15 de julho 2013 - 0:17
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Alguma coisa não bate certo: a PSP identifica cidadãos acusados de atentado à segurança do transporte rodoviário; Miguel Macedo diz que a PSP agiu corretamente e que o caso agora cabe aos tribunais. E o que dizem os tribunais? Arquivaram o processo.

A Greve Geral de 27 de Julho ficou marcada por um processo verdadeiramente sinistro. Noticiava-se que algumas centenas de pessoas tinham ocupado a ponte 25 de Abril e que tinham parado o trânsito ao fim da tarde. A notícia espalhou-se e foi tema de conversa em toda a parte. Nesse dia 226 pessoas foram identificadas e mais tarde submetidas a um processo judicial que culminava num julgamento nesta sexta-feira. O julgamento foi arquivado dois dias antes, mas por uma questão de decência e de democracia não podemos arquivar e branquear o papel da polícia nesse dia, a arbitrariedade do processo e a tortura que se verificou nessa tarde em Lisboa e para os quais alguém deve ser responsabilizado.

Muito se discutiu sobre o papel que a polícia teve nesse processo. Vale a pena começar pelo mais óbvio. Fonte da PSPafirmou no dia que “foram identificadas 226 pessoas e estão acusadas do crime de atentado à segurança do transporte rodoviário, de acordo com o artigo 290.º do Código Penal". Miguel Macedo, ministro que ficará na história pelo regresso da repressão policial como não a víamos há muitos anos, afirmou que “a PSP atuou como devia ter atuado” e que “émuito grave um conjunto de pessoas cercear a liberdade de circulação dos outros cidadãos, razão pela qual, nos termos da lei, a polícia atuou como deveria ter atuado, procedendo à identificação e à notificação dessas pessoas da situação que ali foi gerada”. Ao que indica a PSP e o ministro, os manifestantes foram identificados e submetidos a um tratamento policial degradante por incorreram num crime contra a segurança rodoviária. O que é estranho é que dias depois seja o próprio tribunal a dizer que, a irem a julgamento, todos os suspeitos seriam absolvidos. E mais estranho ainda é que nem a PSP, nem o ministro, sejam agora responsabilizados pelo tratamento degradante que mandaram executar nesse dia sobre os manifestantes.

Alguma coisa não bate certo: a PSP identifica cidadãos acusados de atentado à segurança do transporte rodoviário; Miguel Macedo diz que a PSP agiu corretamente e que o caso agora cabe aos tribunais. E o que dizem os tribunais? Arquivaram o processo, caracterizam a manifestação de pacífica, alegre e com “urbanidade”. Mas tendo o caso sido arquivado para os manifestantes, que responsabilidades serão imputadas à polícia e a quem deu ordem de tortura a 226 pessoas naquele dia?

O que aconteceu nessa tarde foi mesmo tortura. De acordo com o artigo 1º da Convenção contra a Tortura da ONU1 a tortura designa o “ato pelo qual uma violenta dor ou sofrimento, físico ou mental, é infligido intencionalmente a uma pessoa, com o fim de se obter dela ou de uma terceira pessoa informações ou confissão; de puni-la por um ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir ela ou uma terceira pessoa”.

Segundo o relatório do processo, foram mobilizados 80 elementos das Equipas de Intervenção Rápida da PSP, 50 da Unidade Especial da Policia, 20 divisão de trânsito da PSP, 20 da investigação criminal da PSP e 10 elementos do serviço de patrulha. No total, foram mobilizados oficialmente 180 polícias para identificar 226 manifestantes. Quase um polícia por manifestante. Deveriam certamente ter um ar perigoso… Mas se o tribunal considera que é impossível identificar a que suspeitos podem ser imputados os crimes, a quem interessaria afinal ter uma base de dados de todos os manifestantes que participaram naquele protesto?

A polícia bloqueou o grupo de manifestantes num quadrado impenetrável. Trouxeram armas e cães que garantiram que ninguém saía daquele perímetro. A partir daí foram empurrando a manifestação pela estrada e empurrando quem dela tentava sair para dentro do perímetro. Obrigou todos os manifestantes a continuarem o percurso e impediu-os de saírem da barreira. Os advogados estiveram mais de uma hora à espera que os deixassem falar com os manifestantes enquanto a polícia forçava os manifestantes a assinarem uma declaração. O grupo foi obrigado a permanecer, em alguns casos, até 8 horas no quadrado feito pela polícia, grande parte do tempo ao Sol. Foi negada água e comida porque estavam isolados no perímetro da polícia sem possibilidade de contacto com ninguém de fora. Durante horas foram bloqueados pela polícia e, mais tarde, 226 pessoas, uma a uma, foram identificadas por estarem a incorrer, segundo a PSP, no crime de atentado à segurança de transportes rodoviários.

Diz o relatório do tribunal que dos autos não resultam indícios suficientes que permitam concluir quais os arguidos que teriam atendido aos crimes de desobediência qualificada e de atentado à segurança de transporte rodoviários. Mas diríamos que a avaliar pelos relatos de quem lá esteve, o quadrado que a polícia criou e que impediu qualquer pessoa de sair do local é um indício suficientemente claro para condenar a polícia por atentado à segurança rodoviária.

A conclusão parece-me óbvia nesta história. Houve abuso de poder, tortura e tratamento degradantes, mas ninguém será responsabilizado. Porque não é responsabilizado um ministro que ainda afirmou que a PSP fez o que deveria ter feito? Mais um caso de abuso policial que ficará impune. Mais um sintoma de uma democracia em estado de regressão acelerada.


João Mineiro
Sobre o/a autor(a)

João Mineiro

Sociólogo e investigador
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