Amanhã [este artigo foi publicado a 8 de novembro, quando decorriam as eleições nos EUA] terá terminado esta novela das eleições “americanas”. Contados os votos, haverá vencedor(a) e Wall Street, como as chancelarias de tantos países, espera poder suspirar de alívio (e que não haja nenhuma disputa judicial ou arrastamento de incerteza, como com Gore-Bush). Entretanto, a imprensa internacional faz figas e não esconde o seu medo de uma surpresa (ver a capa do The Economist, ao lado). Quanto ao resto do mundo, a perplexidade é esta: como é que a política no país mais poderoso do planeta chegou a isto? Um candidato mobiliza uma grande parte do país com o programa de prender a adversária, construir um muro e cobrá-lo ao vizinho, expulsar milhões de pessoas, melhorar os impostos sobre os ricos e insultar as mulheres, garantindo que só aceita o resultado se ganhar, será isto extravagante ou normal?
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O que mudou é a combinação explosiva entre o esgotamento da globalização amável e o bloqueio da vida social. Crescimento lento com elevado desemprego, salários historicamente rebaixados e fim da imagem do progresso social, conjugado com impotência democrática nos países em que a política é dominada por factores extra-muros, é esse cocktail que desarticula os regimes e que propicia divisões e angústia entre os mais pobres, por vezes assumindo a forma de fundamentalismos religiosos, o mais simples de todos os ódios. Para estes pobres, não há solução nenhuma. E a sua degradação social é o resultado de um sucesso e não de um fracasso: a globalização realmente existente, a liberalização dos movimentos de capitais e a sua consagração em impérios regionais – como com a União Europeia ou os potenciais acordos de livre comércio em torno da economia norte-americana – alimentou uma promessa, tudo para todos, e, ao impor-se, cobrou a realidade, menos que nada para muitos e tudo para alguns.
A ideia de uma globalização feliz esmoreceu por isso ao longo dos anos e por motivos substanciais. Ora, no caso dos Estados Unidos, a decadência provocada pela globalização explica em grande medida a deslocação do eleitorado. Um exemplo esclarecedor foi apresentado por três académicos do MIT, Universidade da Califórnia e de Zurique, que se dedicaram a investigar as razões da perda de seis milhões de empregos na indústria dos EUA entre 1999 e 2011: um quinto desse desemprego deve-se à concorrência chinesa. Em consequência, algumas cidades industriais foram destroçadas. Os despedidos têm todos os motivos para detestar a globalização.
Há duas grandes consequências dessa globalização destruidora. A primeira, talvez surpreendente, foi assinalada pelo New York Times e é a desconfiança em relação aos sistemas políticos. Afinal, diz o jornal, Trump tem algo em comum com a primeira campanha presidencial de Obama, em 2008, quando ele venceu Hillary Clinton nas primárias e depois arrecadou as eleições contra McCain. O ponto seria a desconfiança face a Washington, o centro de todas as intrigas e de uma casta que Clinton e McCain representariam. Nestas eleições, apesar de Trump ser o multimilionário que enriqueceu com a especulação imobiliária e a escapar aos impostos, é Clinton quem aparece como a voz de Wall Street, enquanto o republicano denuncia o “sistema” que permitiria todos os perigos, da imigração ao crime de esticão na rua. Mera fraseologia, poderia dizer-se, ou demagogia no estado puro, o facto é que tem sucesso, que bem pode ser medido pelo facto espantoso de as inconveniências, grosserias e pesporrência do candidato jogarem sempre a seu favor, como se demonstrasse aos seus eleitores que despreza tudo e que manipula a comunicação com o único objectivo de ser notícia.
Ora, existe um problema e foi por isso mesmo que Bernie Sanders teve tanto sucesso nas primárias, precisamente por encorpar entre os democratas e os jovens a rejeição do sistema dos 1%, do poder plutocrático e das ligações tentaculares entre a política e os negócios. Sanders bateu-se contra Washington, ela é Washington, mas Trump parece ser ou diz que é de fora.
A segunda consequência é mais directa e radicaliza uma evolução anterior. Ao longo dos últimos quinze anos pelo menos, os republicanos têm ganho preponderância entre os eleitores brancos sem formação universitária, os mais pobres, que são o maior contingente eleitoral nos EUA (cerca de 60 milhões de pessoas). No mapa em baixo, onde se mede o grupo que é predominante em cada município (nos EUA, cada condado), a mancha azul indica as partes do país em que esses brancos são a maioria. Percebe-se porque é que poderiam ser decisivos, eles são a maioria em quase todo o lado.
Mapa dos maiores grupos por cada condado, baseado nos resultados 2012, eleitores com mais de 25 anos

Entre esses brancos sem educação universitária, a maior fatia do eleitorado, Trump arrasará com 59% a 30% de Clinton, segundo as sondagens. O anterior candidato republicano, Romney, já ganhou a Obama por 57% a 35% nessa fatia eleitoral (e perdeu no país no seu conjunto), mas, ao aumentar esta diferença de 22% para uma vantagem espantosa de cerca de 30%, Trump poderia assegurar a sua vitória nas eleições se anulasse deste modo a diferença nos outros eleitorados (entre os brancos com formação universitária, Clinton poderia ter 47% contra 43%, entre os hispânicos 75% a 20% e entre os negros 82% a 6%). A dúvida é se esta parte da população vota em número suficiente, dado que a sua participação eleitoral tem vindo a decrescer. Assim sendo, a estratégia eleitoral de Trump faz sentido: ele só poderia ganhar com os votos dos desesperados e é para eles que fala. Essa parte do país ignora as conveniências do aparelho republicano, despreza Washington, imagina um passado perdido e espera agora um aurora redentora, o que Trump representa na sua pose extravagante e pomposa. A violência do discurso serve este único propósito, mobilizar os que nunca votam e que precisam de um super-herói para bombardear os seus males e lamúrias.
Volto então à minha pergunta: é isto extravagante, um Farage no faroeste, um pistoleiro à conquista da Casa Branca? Seria fácil de mais. Trump é uma trombeta do que vamos ter e é mesmo isso: o preço da globalização é a desagregação democrática e esta é a hora dos farsantes que se anunciam como apocalipse.
Teremos guerra civil no partido republicano, quer ganhe quer perca Trump, mudará a política norte-americana, quer ganhe quer perca, teremos ameaças e guerrilhas internas, falecerão os tratados internacionais para o comércio, mas o que ficará será sempre isto: acabou a globalização feliz e abriu-se o cortinado sobre os escombros por detrás do palco. O século XXI será o tempo dos Trumps.
Artigo publicado em blogues.publico.pt a 8 de novembro de 2016
