Está aqui
Dois modelos em confronto
Na sua formulação mais abrangente, a teoria da(s) “luta(s) de classes“ configura uma teoria geral do conflito social pelo reconhecimento, isto é, pela abolição da exploração e exclusão que humilham e esmagam a dignidade humana.
Já o Manifesto Comunista de Marx e Engels, publicado em 1848, chamava a atenção para frentes emancipadoras que justificavam a luta de classes, desde logo a luta pelo fim da exploração capitalista da força de trabalho e da natureza. A Associaçăo lnternacional dos Trabalhadores, movimento onde pontificavam aqueles dois filósofos, pronunciou-se desde a fundação a favor da libertação das “nações oprimidas” e, em 1878, Bebel publicou O Socialismo e a Mulher, livro que se tornou muito popular na social-democracia e no movimento dos trabalhadores de todo o mundo, a favor da emancipação política e social das mulheres. Significa isto que um entendimento exclusivamente redutor do conflito social (capitalistas contra proletários, por exemplo) mutila as perspetivas da teoria da transformação social.
Todo o indivíduo ou grupo social está exposto a um conjunto complexo de relações sociais, atribuindo a cada uma delas um significado diferente. O sistema capitalista mundial baseia-se em relações de dominação não-singulares, construídas pelo entrelaçamento de variadas relações de coerção. O que acaba por decidir a arrumação final de um indivíduo ou de um grupo no campo dos opressores ou dos oprimidos é, por um lado, a hierarquização das relações sociais segundo a sua relevância política em cada situação concreta, e, por outro lado, a escolha política singular ou de um grupo. Assim se compreende a afirmação atribuída a Lenine, segundo a qual "quem espera uma revolução social ’pura’ não a verá jamais", porque uma transformação social radical desencadeia sempre a mobilização de diferentes camadas e grupos sociais em torno de causas imprevisíveis.
Foi assim, por exemplo, nas transformaçöes socialistas vitoriosas do século XX. Contrariamente às previsões iniciais e ao que aconteceu com as revoluções burguesas, aquelas mudanças ocorreram em países onde o capitalismo era pouco desenvolvido, como a Rússia, a China ou mesmo Cuba, e onde o proletariado era muito minoritário. A justificaçăo mais disseminada deste fenómeno encontra-se na teoria do elo mais fraco: as ruturas do capitalismo aconteceram nos países e nos momentos em que as múltiplas contradições deste sistema mais se acumularam e mais o enfraqueceram. Na Rússia de 1917, por exemplo, a fome e a exploração dos camponeses sob a forma da servidão, bem como os rigores da Grande Guerra afundaram a elite e o sistema czarista autocrático, incapazes de retirar o país da perspetiva de submissão futura às grandes potências, abrindo espaço a uma adesão nacional massiva em torno de um ideal de emancipação.
Sujeito histórico e transformaçăo social
Nestas experiências, a abrangência e a diversidade das causas não foram entraves ao processo de transformação social, pelo contrário, elas permitiram mobilizar setores diferenciados da sociedade, todos flagelados por problemas estruturais do capitalismo. Este modelo pressupôs um sujeito histórico (a classe dos trabalhadores) que ajudou a encontrar soluções para os problemas das diferentes camadas sociais e grupos oprimidos, colocado estrategicamente num plano diferenciado, por ser capaz de lhes propor um projeto radical de transformação da sociedade à imagem das suas condições materiais de vida, baseadas na solidariedade e na luta pela igualdade. Em vez de um somatório de causas, cada uma com a sua lógica particular desligada de uma visão de conjunto da sociedade, tivemos uma causa única desdobrada em várias frentes (as “lutas de classes“).
Este modelo distingue-se claramente das atuais abordagens pós-modernas, que procuram simplesmente estimular a criação de coletivos sociais gerados a partir das mais variadas situações de carência e de exclusão na sociedade capitalista, norteados pela ideia de criação de "movimento". Partindo do pressuposto de que as últimas décadas produziram modificações substanciais nas classes sociais, em particular a diminuição do peso relativo do proletariado industrial e a criação de processos profundos de fragmentaçăo no conjunto da sociedade, que também o atingiram, a corrente pós-moderna sustenta que o capitalismo contemporâneo terá esbatido a centralidade da relação de exploração associada à contradição entre capital e trabalho, substituindo-a pelas relações de dominação e exclusão, abrangendo mais grupos sociais para além dos trabalhadores. Tudo isto aponta para o abandono do papel messiânico de qualquer classe social, em particular do próprio proletariado, superado por uma gama variada de sujeitos multitudinários.
A questão que se pode colocar é, como se consegue a unidade entre combates tão diferenciados e com quem eles se confrontam. E a resposta é, falando em nome do “povo” ou das “pessoas”, de todos os excluídos, da multidão dos humildes, independentemente da sua filiação partidária e sem referência a uma classe social específica: a “multidão” contra as elites. Foi assim, também, nas revoltas camponesas da Idade Média, sem visão de futuro para o conjunto da sociedade, quando a classe operária não existia ou era pouco numerosa. Este modelo está associado ao populismo (normalmente exige um messias eleitoral) e é sobretudo um combate pelos direitos cívicos individuais e coletivos e pela autodeterminação em busca de uma democracia radical: poder encenado a partir do movimento constituinte dos coletivos sociais e pela ação de um sujeito radical, que é a “multidão” (agregação dos novos movimentos sociais).
O retorno da luta de classes?
As dificuldades que atormentam as sociedades capitalistas contemporâneas remetem muitos milhões de seres humanos para o terreno do desespero, da pobreza e da discriminação criando-se assim condições para o retorno da ideia da(s) luta(s) de dasses. De facto ela nunca desapareceu. Isto significa que inúmeras camadas e grupos sociais se mobilizam pela melhoria das suas condições de vida, engrossando um caudal e um mosaico alargado de causas, como é próprio das situações de crise aguda.
Diz-se que a história de toda a sociedade até aos nossos dias se moveu a partir de antagonismos de classes, antagonismos que se têm revestido de formas diferentes nas diferentes épocas.Veremos qual dos dois modelos atrás enunciados se irá impor no momento que vivemos.
Artigo publicado em “Raio de Luz” de 31 de agosto de 2023
Adicionar novo comentário