Do trabalho em Portugal

porDiogo Machado

03 de maio 2025 - 18:06
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Neste artigo, procuro traçar um breve retrato do trabalho em Portugal, focando-me nalguns dados que ilustram a severidade da condição da classe trabalhadora portuguesa, com vista a sensibilizar para esta luta.

O que une mais de 5 milhões de pessoas em Portugal? A sua posição de classe, de serem trabalhadores, forçados a vender a sua força de trabalho para sobreviver. Se juntarmos a estes os mais de 3 milhões de pensionistas, está formado um retrato bastante completo do país, de uma maioria que vive do seu trabalho.

O trabalho ocupa a maior parte das nossas vidas, determina as nossas condições de sobrevivência, e impacta o nosso tempo livre, a nossa saúde e inserção na realidade social. É uma dimensão fundamental da nossa vida coletiva. A defesa e proteção dos trabalhadores, essa grande maioria que, apesar da sua posição de subordinação nas relações de trabalho e na sociedade, é tantas vezes desprezada e maltratada, tem, por isso, que ser sempre uma prioridade.

Ser trabalhador em Portugal é difícil. A precariedade, as jornadas de trabalho longas e os baixos salários são uma realidade para a maioria de nós, e as últimas décadas têm sido de ataque aos trabalhadores e da sua desproteção paulatina pelos sucessivos governos.

Neste artigo, procuro traçar um breve retrato do trabalho em Portugal, focando-me nalguns dados que ilustram a severidade da condição da classe trabalhadora portuguesa, com vista a sensibilizar para esta luta. Todos os dados provêm do relatório do CoLABOR «Trabalho, emprego e proteção social 2024», disponível aqui, que faz um excelente resumo e cruzamento dos principais indicadores do trabalho em Portugal.

Qualidade do emprego

Um dos primeiros dados que salta à vista na realidade portuguesa é o enorme desajustamento entre qualificações e o emprego oferecido. É a experiência comum de um jovem hoje em dia formar-se numa área de especialidade anos a fio e depois não encontrar emprego na sua área ou numa outra em que as suas qualificações sejam aplicadas e valorizadas. De facto, cerca de 1/4 dos diplomados do ensino superior exercem funções que não requerem o seu nível de qualificações (índice de sobrequalificação de 25%). Isto demonstra um mercado de trabalho que não consegue absorver trabalhadores qualificados, o que se explica, por sua vez, pelo fraco perfil de especialização da economia portuguesa, excessivamente ‘terciarizada’ e concentrada em setores pouco intensivos em conhecimento e de baixo valor acrescentado. Talvez isto explique melhor a emigração de jovens que a conversa dos impostos…

Vale a pena fazer uma pequena digressão pelas dinâmicas setoriais do emprego em Portugal. No período pós-recessão (2013-2022), os setores onde mais empregos foram criados foram o comércio e o alojamento/restauração, o que demostra bem o peso dos setores de baixo valor acrescentado, mas também de baixos salários e contratos precários. Uma economia viciada no turismo que não cria bons empregos não nos serve – a nossa intervenção tem que ser também no sentido de alterar o padrão de especialização da economia para criar empregos em setores intensivos em conhecimento e que paguem bons salários. Caso contrário, pagaremos, mais cedo ou mais tarde, o preço de estar a mandar multidões de diplomados para trabalhar em cafés e call centers

Precariedade e horários atípicos

O número é chocante: 31,4% dos trabalhadores do setor privado em 2022 não tinham contratos permanentes! Quase 1/3 da força de trabalho em Portugal no privado tem um contrato precário, seja ele a termo, temporário, informal ou por conta própria, a grande maioria deles de forma involuntária. Trata-se de um grupo enorme de pessoas que está numa posição de extrema vulnerabilidade, na incerteza se encontrará outro emprego quando o atual vínculo terminar, se o rendimento daquele mês será suficiente para as despesas, e se o desemprego e a perda de rendimentos não estarão ao virar da esquina, muitas vezes com filhos para alimentar e casas para pagar. De facto, entre janeiro e agosto de 2024, 45% dos trabalhadores entraram para o desemprego devido à cessação de um contrato de trabalho não permanente. Isto é um drama social que só é tão expressivo devido a todas as exceções e regras criadas ao longo dos anos na lei laboral que legitimam o abuso no recurso a estas modalidades contratuais atípicas.

As jornadas diárias de trabalho longas são também uma caraterística da realidade laboral portuguesa. Ao contrário dos tropos difundidos pela direita e pelos patrões – que os portugueses trabalham pouco e teriam que trabalhar mais, que não são suficientemente produtivos –, Portugal é na verdade o 7º país da União Europeia onde se trabalha mais horas: 41,3 horas semanais em comparação com a média europeia de 40,4 horas.

Cerca de 1/3 da população empregada em Portugal tem horários de trabalho atípicos, isto é, que implicam o trabalho ao fim de semana, trabalho por turnos ou trabalho noturno. Estima-se que o trabalho por turnos abranja cerca de 19% dos trabalhadores (entre 900 mil e 1 milhão), sendo que a maioria não tem poder de decisão sobre os turnos e faz turnos rotativos. Trata-se de trabalhadores que vivem contra o relógio, com sonos desregulados, elevado desgaste físico e mental, fraca conciliação da vida pessoal e profissional e falta de tempo para a família, lazer e amigos. Muitos destes empregos são em atividades económicas que, não sendo essenciais, não justificam a laboração contínua e o recurso a turnos. São empregos e vidas fustigantes para estes trabalhadores, registando-se também uma grande incidência de problemas de saúde.

Salários e contratação coletiva

As remunerações são outra realidade absolutamente perversa no mercado do trabalho português. O estudo supramencionado indica-nos que, em 2024, a remuneração bruta mensal total declarada por trabalhador foi de 1.528€, enquanto o valor da remuneração regular foi de 1.294€, o que é baixíssimo se tivermos em conta a inflação dos últimos anos e o custo de vida que enfrentamos. Além disso, Portugal carateriza-se por uma elevada desigualdade salarial, observada na distância entre os dois decis superiores da repartição em relação aos restantes, e por uma elevada incidência do salário mínimo e concentração das remunerações em torno dele, ou em níveis baixos. Em 2022, metade dos trabalhadores por conta de outrem no privado auferiam um rendimento bruto inferior a 1.018€. Mesmo no 8º decil, por exemplo, o rendimento médio bruto era inferior a 1.500 €. No mesmo ano, 22,4 % dos trabalhadores do setor privado a tempo inteiro auferiam o salário mínimo. Infelizmente, a conclusão é inequívoca: os salários são muito baixos em Portugal.

Como se explica isto? Por um lado, regresso mais uma vez ao perfil de especialização da economia: se os setores que criam emprego são de baixo valor acrescentado, os empregos gerados serão naturalmente de baixos salários. Por outro lado, a compressão salarial é explicada pelo desequilíbrio de poder na relação laboral entre o trabalho e o capital, favorecido pelas sucessivas revisões ao Código do Trabalho que intervieram em favor do último. Esta relação de forças desequilibrada permite aos patrões manter os salários baixos enquanto os lucros engordam, dando pouca margem aos trabalhadores para inverterem esta situação.

Isto é particularmente visível se analisarmos a evolução dos salários e da produtividade na economia portuguesa. Diz a boa teoria liberal que os salários não podem crescer se a produtividade não o fizer, uma vez que são os ganhos de produtividade que possibilitam as subidas de salários. Na verdade, desde 2003 que a produtividade tem crescido a um ritmo superior aos salários, pelo que estes ganhos têm sido apropriados pelo capital e não refletidos nos salários. Desta forma, a repartição funcional do rendimento tem sido cada vez mais desfavorável aos trabalhadores: a parte do rendimento no PIB declinou fortemente neste século, tendência apenas levemente contrariada nos anos da ‘Geringonça’.

Não podendo o Estado definir salários no privado por decreto, a sua intervenção passa por estabelecer o salário mínimo e por definir o enquadramento legal e económico em que operam as relações laborais, podendo escolher reforçar e proteger a parte mais fraca – os trabalhadores e os suas organizações coletivas (sindicatos) – por forma a dar-lhes condições para poderem obrigar os patrões a fazer cedências.

Infelizmente, a opção tem sido a contrária. Isto é particularmente visível na contratação coletiva, um instrumento tão importante para garantir o contínuo melhoramento dos salários e condições de trabalho e para dar força aos trabalhadores nas negociações, de outra forma atomizados e enfraquecidos. O governo PSD-CDS introduziu em 2003 a norma da caducidade das convenções coletivas e o PS nunca a quis reverter. Como explica Filipe Lamelas, «com a possibilidade de os instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho poderem cessar a sua vigência, a posição dos sindicatos ficou claramente fragilizada, com prejuízo para os trabalhadores que representam: uma coisa é negociar tendo por base um património de direitos que serviria como ponto de partida, outra é negociar a partir de um vazio». Desde aí, PSD/CDS e PS fizeram renovadas revisões da lei laboral com o objetivo de enfraquecer a contratação coletiva.

De facto, apenas 27% dos trabalhadores em 2022 estavam potencialmente abrangidos por instrumentos de regulação coletiva de trabalho, muito abaixo dos 66% em 2008. A contratação coletiva tem que ser uma prioridade se queremos subir salários, sendo o instrumento mais eficaz para obrigar os patrões a efetuar uma distribuição mais justa dos rendimentos. De outra forma, não garantimos que criação de riqueza e aumentos de produtividade se refletirão nos salários, podendo ser apropriados a bel prazer pelos patrões.

Chegado ao fim, creio que serão óbvias as enormes dificuldades com que a classe trabalhadora portuguesa se confronta, o que só nos pode levar a constatar a necessidade da luta laboral, no 1º de maio e além.

Diogo Machado
Sobre o/a autor(a)

Diogo Machado

Mestre em Relações Internacionais e trabalhador do setor financeiro
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