Do tecno-libertarianismo à tecno-distopia

porMaria J. Paixão

06 de fevereiro 2025 - 17:20
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Os grandes titãs tecnológicos, outrora proponentes da construção de uma sociedade aberta e livre à margem dos Estados através dos meios tecnológicos, estão agora sedentos de poder político.

Desde os primórdios da internet até à primeira década dos anos 2000, no seio da então emergente indústria tecnológica floresceu uma vanguarda cultural defensora de uma filosofia tecno-libertária. O movimento "cypherpunk" propugnava o uso de criptografia e tecnologias de privacidade como meios de emancipação dos indivíduos na nascente sociedade digital, permitindo-lhes escudar-se contra a intromissão abusiva dos Estados na sua vida privada. Os princípios base da descentralização do poder e oposição à hegemonia autoritária das instituições impulsionaram a criação das criptomoedas, por via das quais se pretendia criar um sistema de pagamentos paralelo, insuscetível de ser cooptado pelas grandes instituições financeiras nacionais e internacionais. Os valores partilhados eram fundados num otimismo tecnológico utópico, que, paradoxalmente, fundia ideais progressistas e crenças neoliberais. A liberdade de informação encontrava-se no âmago do projeto tecno-libertário, considerada chave para a reorganização da sociedade em moldes horizontais.

Num ensaio de 1995, Richard Barbrook e Andy Cameron apelidam esta filosofia de "ideologia californiana", notando que nela se fundiam elementos típicos da esquerda e da direita libertárias. Os titãs das grandes tecnológicas adotaram esta filosofia e Silicon Valley transformou-se numa verdadeira incubadora libertária.

Esta oposição acérrima da indústria tecnológica ao Estado tem vindo a desvanecer-se na última década e parece ter sido definitivamente enterrada com a colocação de Elon Musk na Administração Trump. Os grandes titãs tecnológicos, outrora proponentes da construção de uma sociedade aberta e livre à margem dos Estados através dos meios tecnológicos, estão agora sedentos de poder político. De neutros e apolíticos passaram a titulares de cargos nas mais altas instâncias governamentais e a clientes dos mais poderosos Estados do mundo. Para tal, abriram mãos dos ideais progressistas, alinhando-se agora com os nichos mais reacionários da política internacional.

Musk parece ser o exemplo paradigmático deste arco histórico. Nos primórdios da sua carreira, apresentava-se como um empreendedor idealista, cujas apostas negociais e produtos desenvolvidos se norteavam pelo desiderato de encontrar soluções – tecnológicas – para os mais prementes problemas da Humanidade. As suas primeiras incursões na indústria tecnológica, com a participação nas embrionárias PayPal, Tesla e Open AI e a criação da Space X, norteavam-se, alegadamente, pelo objetivo de edificar uma sociedade cibernética, global e multiplanetária. Sem prejuízo do muito que se poderia dizer sobre o projeto tecno-libertário de Musk, é especialmente intrigante a sua metamorfose em conservador reacionário, assumido pro-natalista, defensor de intervenções em territórios estrangeiros e difusor de teorias da conspiração.

Não será completamente errado afirmar que a transformação de Musk e demais tecno-bilionários é a manifestação mais extrema da transformação social que o mundo ocidental tem sofrido desde os anos 90. A euforia e a autoconfiança sentidas na viragem do século, que colocavam sobre as sociedades ocidentais uma aura de última etapa do desenvolvimento civilizacional, começaram a desvanecer com a crise financeira de 2008. Desde então, o espírito triunfante anterior não conseguiu voltar a infundir a vida social no ocidente e, consequentemente, a política foi-se deteriorando. Nos anos 90 e inícios dos anos 2000 era fácil, sobretudo em Silicon Valley, incorporar o mito do "self-made man", o sujeito neoliberal que vence na vida pelo seu talento e génio individuais. Com um horizonte de eterna acumulação de capital, era também fácil apoiar políticas progressistas, sobretudo se apoiadas na mesma retórica individualista e meritocrática.

Depois de 2008, esta visão fantasiosa começou a esfumar-se. As massivas intervenções estatais para salvar o sistema financeiro e todas as indústrias nele alicerçadas tornaram evidente aquilo que sempre foi verdade: o mercado não existe, o mercado é criado. Com a expansão da indústria tecnológica e a crescente concorrência da China, tornou-se também cada vez mais difícil sustentar a ilusão da separação entre o mundo tecnológico e a política. A evolução do setor no sentido do oligopólio e o receio perante o acelerado desenvolvimento tecnológico chinês vieram tornar evidente a plutocracia subjacente. Afinal, o controlo dos mercados, os subsídios governamentais e a imposição de tarifas em seu favor sempre foram pilares essenciais do modelo de negócios dos tecno-lordes – as regras do mercado são boas se funcionarem a seu favor. Em tempos conturbados, para garantir que o poder continua a alimentar o seu domínio e privilégios, viram-se obrigados a aderir às ideologias políticas daqueles que se mostraram disponíveis para satisfazer os seus caprichos, deixando assim cair a máscara da neutralidade.

Esta descendência do tecno-libertarianismo à tecno-distopia é, em suma, o resultado inevitável de uma ideologia que sempre foi de plástico. Personagens como Musk nunca quiseram "salvar a Humanidade" ou criar autênticas sociedades livres e horizontais. O libertarianismo servia-lhes de álibi e de entretenimento.

Musk está a caminho de se tornar o primeiro "trilionário" que alguma vez existiu. Ninguém acumula tantos biliões de dólares com base em altruísmo e idealismo. Agora que a estabilidade do sistema que os beneficiava começa a quebrar, os titãs tecnológicos rapidamente abrem mão dos seus ideais libertários e usurpam o poder como podem, tornando-se funcionários ou subcontratantes do Estado que diziam odiar. Para garantir a continuação dos seus privilégios, não têm pudor em aderir às mais reacionárias políticas disponíveis. Afinal, nunca foi sobre progresso.

Artigo publicado em Sabado a 2 fevereiro 2025

Maria J. Paixão
Sobre o/a autor(a)

Maria J. Paixão

Assistente Convidada na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e Investigadora na área do Direito do Clima. Ativista pela Justiça Climática junto de vários movimentos sociais
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