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Do nevoeiro como forma de governar

O pântano tornou-se a forma de governar da maioria absoluta, que nem sabe nem quer sair disto. António Costa, como já se percebeu, é o padrinho do populismo e está orgulhoso do seu papel.

As crises do Governo, todas autoinfligidas, têm caminhado inexoravelmente do péssimo para o patético. Pode pensar-se, e é o meu caso, que é uma patologia da maioria absoluta, que permite a escolha de gente desqualificada, que a protege com o ‘mandonismo’, que fecha o “círculo duro” — que expressão maravilhosa — numa redoma de automistificação, que facilita o acesso de interesses gulosos e que olha para o país como uma plebe que lhe deve obediência e cujos surtos de protestos são vistos como injustiça contra o esforço meritório dos iluminados que administram a terra. Mas há mais do que isso, pois esta longa agonia cava trincheiras, desgasta a vida democrática, desautoriza o debate político, desvaloriza as formas de controlo, bloqueia alternativas. Se se resumir a vida pública portuguesa do último ano, dá nisto: há governantes que se comportam como crianças no recreio (secretária de Estado por um dia, coordenador da política do Governo que paga centenas de milhares de euros por um pavilhão inexistente, o que é que ainda conseguem inventar mais?), e a direita limita-se a discutir a forma de aproximação à extrema-direita.

O pântano tornou-se a forma de governar da maioria absoluta

Há disto uma consequência: quanto menos vale o episódio, mais dramática se anuncia a conclusão final deste jogo. A isto se chamou um dia “pântano”, mas o inventor do termo nem imaginava que pudesse vir a ser aplicado a uma crise em câmara lenta, por meses ou, quem sabe, um ano ou dois. O pântano tornou-se a forma de governar da maioria absoluta, que nem sabe nem quer sair disto. António Costa, como já se percebeu, é o padrinho do populismo e está orgulhoso do seu papel.

Jogos

Que Galamba tenha entretido o país com o folclore de agressões, sequestros, ameaças à segurança nacional e outras farsas, ainda vá, é o mundo que ele compreende. No momento, o primeiro-ministro teve a sensatez de não lhe atender o telefone (“estava a guiar”), mas não o impediu de citar segundas figuras que teriam consolado a musculada resposta ao golpe que o palácio sofrera. Já é mais estranho que esta narrativa tenha sido depois repetida pelo próprio primeiro-ministro em declaração solene à nação. Quando o chefe do Governo justifica uma crise, que deu demissão do ministro, com acusações a um adjunto, desce a um patamar em que nunca pensei ver alguém com a sua responsabilidade. Aparentemente, pensará que esse eflúvio de “consciência” lhe dá força e não mostra a fraqueza em que mergulha o Executivo.

O nevoeiro é o lugar do apodrecimento e foi o caminho que o Governo escolheu. Galamba vai-no-lo lembrar de cada vez que falar em público

Suponho que terá sido o seu guru da comunicação que inventou esta jigajoga em que Costa combinou a operação com Galamba de manhã, foi à tarde anunciar ao Presidente que o ministro ficaria, depois dessa oficialização o ministro ainda assim se demitiu para fingir e o primeiro-ministro resgatou-o heroicamente, chamando a isto “consciência”. O ponto a que se baixou, como se o povo fosse estúpido e não percebesse o insulto.

Mentiras

A mentira de Galamba foi uma coisa quase trivial, no ponto em que as coisas estão. Fez um comunicado a afirmar que a CEO da TAP tinha pedido para ir à reunião com o PS, em que o ministro não esteve, quando agora se sabe que foi num encontro anterior que ele próprio lhe sugeriu que fosse a essa dita cuja reunião com o grupo parlamentar do PS. É tudo telenovela, não é? Só se pode perguntar como é que se incomodam com rasteiras deste calibre, protegidas depois por respostas à rufia. O que ficámos a saber, ninguém se esqueça, é que Galamba é o homem escolhido para privatizar a TAP e para isso fica.

De facto, se a mentirinha fosse uma fuga ocasional, menos preocupação haveria. A questão, na minha opinião, é que a mentira é tolerada como um exercício do poder. O exemplo mais grave foi o documento com contas falsificadas que a ministra da Segurança Social enviou ao Parlamento em setembro e a que aqui me referi na semana passada. Foi o suporte para uma operação de atemorização de milhões de pensionistas, com a conclusão tremenda de que, se não sofressem uma perda do valor real da pensão, a vida do sistema seria reduzida em 13 anos. O primeiro-ministro retomou a mentira de modo contundente, como é seu timbre, para garantir que só uma lei punindo as pensões manteria a sustentabilidade da segurança social. A mentira durou três semanas, o Governo entregou depois contas verdadeiras — mas foi a mentira mais grave e com consequências políticas mais ameaçadoras e foi tolerada como feitio e não como defeito.

Nevoeiro

Ao escolher a bravata de ir “contra todos os comentadores”, como se isso importasse, e ao manter o ministro, Costa disparou contra Marcelo, que tanto conforto lhe deu ao longo de sete anos e que o ajudou no golpe de 2021, provocando eleições para a maioria absoluta. Dizem que agora, como num jogo de póquer, quer obrigar Belém a mostrar as cartas. Será, em todo o caso, um movimento de curto prazo. E, nisso, anuncia uma derrota inevitável. Governar pela intriga entre São Bento e Belém, disso já tivemos mestres ao longo dos anos; negociar pelo nevoeiro em que o poder se ridiculariza com episódios caricatos e arrastando os problemas (e os médicos de saúde familiar; e a educação; e o recorde dos preços da habitação?), entrega ao Presidente o poder que nunca utilizou, fazer do desgaste do Governo a sua missão para preparar eleições. O nevoeiro é o lugar do apodrecimento e foi o caminho que o Governo escolheu. Galamba vai-no-lo lembrar de cada vez que falar em público.

Artigo publicado no jornal “Expresso” a 5 de maio de 2023

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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