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A direita presa entre Reagan e Trump

O paradoxo da direita nas eleições é: se fica no terreno Centeno está perdida, se terça armas pela “classe média alta” fica isolada e se resvala para o populismo é desprezada.

O paradoxo da direita nas eleições é este: se fica no terreno Centeno, que foi o que escolheu para si própria desde há oito anos, está perdida; se terça armas pela “classe média alta”, fica isolada; se resvala para o populismo agressivo, é desprezada. Nada resulta. Por isso, Assunção Cristas vai perdendo terreno e Rui Rio só recupera alguma coisa ao sair da equação, com uma pose de sinceridade que o deixa prometer apoio ao PS para se ver livre da esquerda, como o fez no último ano, ou que cairá de pé, na sua expressão mais recente. Há nisto tudo algum encanto pelo discurso direto, mas nenhuma alternativa. António Costa será primeiro-ministro, Centeno continuará a ser tão ou mais popular na direita do que os chefes da dita.

Este impasse resulta de uma impossibilidade: a direita que triunfou no passado sendo reaganiana, já não o pode ser; e a que agora triunfa lá fora sendo trumpista, ainda não pode ser imitada entre nós.

O dilema Reagan-Trump

Este dilema Reagan-Trump exprime-se claramente no CDS. Nuno Melo foi o ensaio Trump, um discurso de raiva contra as esquerdas, uma alusão cultural tremendista (“querem destruir todos os nossos valores”, atroou esta semana) e a tentativa de polarização que radicalizasse a direita. Foi varrido nas europeias. Cristas percebeu o recado, virou-lhe as costas e regressou ao passado para o ensaio Reagan: queremos que a tal classe média alta pague menos impostos, tenha colégios e hospitais privados subsidiados e possa pagar a inscrição do menino na universidade, mesmo que não tenha estudado para o exame. Era a promessa reaganiana, os do meio e de cima hão de subir com a nossa mão. Chamava-se “meritocracia”, para criar alguma identidade autorreferencial.

Não resultou, dado que num país tão desigual este elevador do privilégio protegido cai mal. É muito Linha de Cascais. No seu tempo, Reagan teve a habilidade de fazer pensar aos jovens com curso universitário que poderiam ser CEO de multinacionais e viver no paraíso. Todos podem lá chegar, e ganhou eleições. Quarenta anos depois, esse discurso soa a despejos das casas dos idosos nos bairros históricos.

Obviamente, Rui Rio, que procura raízes eleitorais numa população mais vasta, evita esse nicho. Ele ganhou a Câmara do Porto com sobranceria anticultural, mas com votos populares e até com atrevimento anticlube de futebol. Mesmo que fique agora numa terra de ninguém, que o leva a uma única disputa, com a marca eleitoral de Santana Lopes. Portanto, nada resulta à direita nestas eleições.

A tentação Trump

Devido a esse vazio, a tentação Trump sobrevive em alguns aspirantes, mesmo depois da experiência falhada das europeias. Pode-se alegar que Miguel Morgado ou Bruno Vitorino, entre outros que arrastaram o grupo parlamentar do PSD para a indignação contra o respeito pelos jovens em transição de identidade de género e as suas famílias, são muito marginais e que só se tornam notícia pela extravagância. O problema da estratégia Trump é este, não tem ninguém, nem tem modo de criar uma fronteira tribal. Não há tribo sem ódio, não há ódio sem fronteira.

Quem leu o “Lamento de Uma América em Ruínas”, de J.D. Vance, sabe como isso foi surgindo nos Estados Unidos. Ele é licenciado em Direito em Yale, uma escola de elite, dirige uma agência financeira em Silicon Valley, mas vem de uma família pobre. E é essa história que conta no livro. A família tinha-se mudado de Kentucky para Middletown, uma pequena cidade siderúrgica no Ohio; são operários e brancos, com uma história de desespero, pobreza, fuga à escola, drogas e prisões; os filhos são criados pelos avós. Quase nenhum deles teve emprego certo, vivem da segurança social e do que aparecer.

Escreve Vance: “Na sociedade americana que tem consciência das questões de raça, o nosso vocabulário normalmente não vai além da cor da pele de alguém: ‘negro’, ‘asiático’, ‘brancos privilegiados’. Às vezes, essas categorias amplas são úteis, mas para compreender a minha história é preciso prestar atenção aos detalhes. Posso ser branco, mas não me identifico com os ‘brancos protestantes e anglo-saxões’ do Nordeste dos Estados Unidos. Pelo contrário, identifico-me com os milhões de americanos brancos da classe operária, descendentes de escoceses e irlandeses, que não possuem um diploma universitário. Para essa gente, a pobreza é uma tradição familiar (...). Os americanos chamam-lhes ‘saloios’, ‘labregos’, ou ‘escumalha branca’. Eu trato-os por ‘vizinhos’, ‘amigos’ e ‘família’”. São estes norte-americanos pobres nas pequenas cidades, tratados como “labregos” e invisíveis, que desequilibraram as eleições presidenciais onde Trump venceu.

Pode o ódio vencer?

Ou seja, a história de J.D. Vance sugere que terá sido a identidade humilhada e tribal que decidiu o voto destes eleitores, que simplesmente gritam contra a sua condição de margem. Por isso bebem o discurso contra os mexicanos ou contra as mulheres. O seu ressentimento contra a invisibilidade convida a um discurso apocalíptico, que Trump encarnou. A segunda característica é que estes discursos discriminatórios têm por função confirmar um conservadorismo profundo, quando o mundo em que estas pessoas são infelizes se está a desmoronar. Ao prometerem ao homem pobre um poder desmedido sobre a mulher, estão a confirmar-lhe a força mais rude. Esta ilusão do poder é um paliativo barato e eficaz.

O problema é que a direita portuguesa sabe que, para ser Trump, precisa de encontrar a sua tribo e o seu ódio. Assunção Cristas e Rio não contarão para esse campeonato. Virão os próximos e veremos a sua cor.

Artigo publicado no jornal “Expresso” a 28 de setembro de 2019

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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