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A desumanidade de Bolsonaro é inesgotável

Indiferente ao colapso da saúde pública e dos cadáveres empilhados em várias cidades, presidente do Brasil acumula inimigos entre governadores, Judiciário e Legislativo. Na sua mira estão agora também os profissionais de saúde.

O caos sanitário instalou-se no Brasil. Em Manaus, capital do estado do Amazonas, Uildéia Galvão, médica do Pronto Socorro 28 de Agosto, relata ao El País: “É difícil você ver pessoas morrerem sozinhas. Sozinhas, sozinhas, sozinhas. Sozinhas”. E a jornalista que a ouviu comenta: “Sim, ela repete o ‘sozinhas’ cinco vezes como quem não acredita nas próprias palavras que saem da sua boca.”

“Sim, ela repete o ‘sozinhas’ cinco vezes como quem não acredita nas próprias palavras que saem da sua boca”

A médica trabalha 12 horas por dia, todos os dias, às vezes, 20 horas, atendendo os 120 leitos da Sala Rosa do Pronto Socorro, para onde são encaminhados os doentes graves de Covid-19. Desde 20 de março, ela mantém este ritmo e reconhece que o seu maior temor é a exaustão. Em plena pandemia, os profissionais de saúde dos pronto-socorros de Manaus ainda não receberam o salário de fevereiro (!) e são forçados a comprar os seus próprios equipamentos de proteção. Passaram-se muitos dias sem que o laboratório de saúde pública do Amazonas recolhesse material para fazer os testes de covid-19.

No domingo 26 de abril, houve 140 sepultamentos na cidade. No entanto, os dados informados ao Ministério da Saúde mencionavam apenas 17 mortos.

Pandemia descontrolada

O colapso da saúde pública de Manaus é apenas o ponto mais avançado da expansão descontrolada da pandemia no Brasil. No Rio de Janeiro, o governo estadual e o Conselho Regional de Medicina estudam critérios para escolher quais doentes vão ter direito a uma vaga nas Unidades de Terapia Intensiva (UTI) superlotadas. Em São Paulo, diante da mesma situação de falta de leitos hospitalares disponíveis, o governo vai começar a transferir pacientes com a Covid-19 para hospitais de cidades do interior do estado.

Face ao caos sanitário reinante, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal questionou o novo ministro da Saúde do governo Bolsonaro, Nelson Teich, sobre a provável subnotificação do número de mortes provocadas pela Covid-19 no Brasil. Deu-lhe o prazo de cinco dias úteis para responder. Provavelmente, o ministro vai responder que não sabe. Desde que tomou posse, a 17 de abril, essa foi a sua resposta mais frequente. Desde essa data deixaram de se realizar as conferências de imprensa diárias para anunciar os números da epidemia e as reuniões igualmente diárias do governo federal com as secretarias estaduais de Saúde. Teich fez só uma, e a impressão que deu aos participantes foi que estava desorientado. Perguntou, por exemplo, onde os estados conseguiam ventiladores, reconhecendo que não estava a conseguir comprá-los. Na quinta-feira, 30 de abril, admitiu que é possível que o Brasil chegue à cifra de mil mortos por dia. E afirmou que não está a pensar em relaxar o isolamento. No dia seguinte, o presidente Jair Bolsonaro, com quem o novo ministro afirmou ter identidade total, disse que gostaria que a população voltasse a trabalhar.

Em breve, os pronunciamentos do ministério da Saúde vão se resumir a informar o número de mortos, diz a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.

Caos político

É aqui que o caos sanitário se encontra e articula com o caos político, numa combinação particularmente explosiva.

A falta dos mais mínimos sentimentos humanitários, a gerontofobia assumida vieram se juntar ao restante ideário bolsonarista: o elogio da tortura e da ditadura militar, a homofobia, a misoginia, o alinhamento ao trumpismo

Bolsonaro adotou como tema de campanha o ataque ao isolamento social. Os inimigos a abater são a maioria dos governadores dos estados, que aplicaram, de forma tímida, medidas de contenção para tentar evitar a expansão descontrolada da pandemia, num país de mais de 200 milhões de habitantes. Além dos governadores, também entra no rol de inimigos a abater o Judiciário, que barrou medidas do executivo federal sempre que estas se afastavam das orientações da OMS. Mais grave ainda, do ponto de vista bolsonarista, o Supremo Tribunal Federal (STF) impediu a nomeação do favorito de Bolsonaro para chefiar a Polícia Federal, um homem que dava todas as garantias de que as várias investigações que têm como alvo os filhos do presidente nada iriam averiguar.

Nem as pilhas de cadáveres que se amontoam nos corredores dos hospitais, à espera de uma vaga nos cemitérios, nem os mais de seis mil mortos, em ritmo de crescimento acelerado, abalam no mais mínimo as convicções bolsonaristas. “O vírus vai atingir 70% da população, infelizmente é uma realidade”, diz o presidente. Depois do flop do “milagroso” remédio cloroquina (Bolsonaro deixou de falar nele), passou a tratar a pandemia como uma inevitabilidade, onde só morrem os fracos e os idosos. “É a vida, amanhã vou eu”. Quando é colocado diante das cifras necrológicas, reage: “E daí? Lamento, quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagres.”

A falta dos mais mínimos sentimentos humanitários, a gerontofobia assumida – se só os velhos morrem, se os saudáveis contagiados sentem apenas uma “gripezinha”, para quê tanta preocupação? – vieram se juntar ao restante ideário bolsonarista: o elogio da tortura e da ditadura militar, a homofobia, a misoginia, o alinhamento ao trumpismo, etc.

O fundo do poço ainda está longe

E quando se pensa que já se viu tudo, que o bolsonarismo já chegou ao fundo do poço, há sempre uma nova canalhice para mostrar que o neofascismo é inesgotável em matéria de desumanidade.

Afastar Bolsonaro da Presidência do Brasil tornou-se um caso urgente de saúde pública

No dia 1º de Maio, o sindicato dos enfermeiros organizou um protesto em Brasília. Algumas centenas de manifestantes dispuseram-se na esplanada dos Três Poderes, com máscaras de proteção, separados pela distância de segurança e empunhando cruzes em homenagem aos profissionais de saúde mortos no combate à pandemia. Um pequeno grupo de bolsonaristas foi provocá-los.

Em Portugal, aplaudimos os nossos profissionais de saúde, heróis da linha de frente no combate à pandemia. No Brasil, os bolsonaristas mandam-nos “para Cuba” ou “para a Venezuela”, chamam-nos de “esquerdopatas”, afirmam que “sindicatos são gafanhotos” consideram “ridícula” a homenagem aos enfermeiros mortos.

Afastar Bolsonaro da Presidência do Brasil tornou-se um caso urgente de saúde pública.

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Jornalista do Esquerda.net
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