Destruir insidiosamente conquistas de Abril

porMaria Luísa Cabral

20 de janeiro 2025 - 15:46
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Para a direita, um princípio estar ou não inscrito na Constituição de 1976, a que nos rege, é indiferente. Para a direita até é desafiante testar a firmeza do que nela está escrito. A direita ri-se assim dos portugueses e vai medindo forças.

Não pode ser mais evidente sobre esta mangação se não aquilo que se vai passando com o SNS. Ou melhor, com o que resta do SNS. O Governo com uma maioria de 1 deputado apenas, vai continuamente driblando, ora empurrando para canto a extrema direita ora ganhando aos socialistas e à esquerda. A governação tem-se pautado por muitas medidas que ora sofrem ajustes posteriores mercê da intervenção do Parlamento ora não tem efeitos nenhuns. Ao fim de oito meses de governação, o que fez o Governo? Para além das intervenções públicas do Primeiro-Ministro, ora alarmistas (lembremo-nos da conferência de imprensa para comunicar não sei o quê sobre segurança) ora ocas (como a intervenção na quadra natalícia), tem sobressaído as intervenções da Ministra da Saúde. A bem dizer não são intervenções, também não são comentários, são uma espécie de afirmações “estou viva, e apresento-me”. Mais-valia que não o fizesse.

Os avistamentos da Sra. Ministra são praticamente diários, mas o último que registei foi sobre a redução de atendimentos nos serviços de urgência. Aproveitou, como sempre, para enaltecer a medida tomada relativa à utilização da Linha SNS24. O cidadão sente-se doente? Muito doente? Muito, pouco ou nada, o cidadão apanhado em autogestão tem de decidir, é bom que acerte.  Muito doente, chama o 112; só um poucachinho doente, então, liga para a linha SNS 24 e contribui para o milagre da redução na afluência aos hospitais. Sra. Ministra, isto é delirante!

Os números estão na posse do Ministério e o pessoal de confiança da Sra. Ministra, nós só podemos falar de casos concretos que conheçamos. Recorro à minha experiência, fresquinha, não tem duas semanas mesmo sobre a grande tomada de decisão que iria alterar para melhor o atendimento nas Urgências. Estava com dificuldades respiratórias, enorme cansaço, arfava como peixe fora de água. Entre ir ao Centro de Saúde ou ao particular, decidi-me por aquilo a que constitucionalmente tenho direito. Contudo sabia que ia fazer a travessia do deserto porque a minha médica de família deu de frosques. Meu dito, meu feito. E apanho com a inevitável resposta, “a senhora ligue para o SNS24 que a encaminham”. Liguei e fiquei pendurada na linha 40 minutos. Quarenta longos minutos antes do encaminhamento durante os quais não me cansei de pensar que podia ter tido um AVC ou um ataque cardíaco e por ali ficava, telefone pendurado sem nenhuma utilidade, comunicações da post modernidade defraudadas. Quando finalmente fui atendida, reclamei. Mil desculpas do outro lado, estavam atrapalhados, que não voltaria a acontecer (comigo não certamente). Seguiu-se um inquérito bem esmiuçado e mandaram-me para São José onde me asseguraram, já estariam à minha espera. Achei extraordinária a eficácia e, claro, fui, sempre aproveitava para testar esta solução vendida como miraculosa.

Sem notar movimento de assustar qualquer mortal, dirigi-me para o guichet. Sim, o meu nome já lá estava (bendita tecnologia!) e quando me parecia que a lógica seria mandarem-me para a triagem, mandaram-me esperar. A não ser que haja uma explicação muito subtil, ter o pré-diagnóstico feito através da linha SNS24, não adiantou rigorosamente nada. Enquanto arfava, sentei-me resignada a esperar o que fosse preciso. Em abono da verdade, devo dizer que não esperei muito para ser chamada. O mais irreal ia seguir-se.

Repetiu-se o inquérito, se não igual ao telefónico, parente próximo. Não sou de exageros e embora estivesse atrapalhada também me pareceu que ainda não era daquela. “A Senhora não está muito aflita, pois não?”. Confirmei. “Então, é melhor vir cá amanhã de manhã, marco-lhe uma consulta, não tem de ficar à espera, concorda?”. Concordei. “Quando chegar à porta da Urgência, vê no chão pintadas duas riscas, uma verde outra azul, segue-as e vai dar ao CASU (Centro de Atendimento do Serviço de Urgência), é atendida aí”. Não resisti a perguntar: “Sigo a risca azul ou a verde?”. Explicou-me que “As duas estão pintadas junto, segue-as, pronto, é logo ali ao lado”. Agradeci e saí. Não engrossei, pois, o número de pessoas a aguardar pelo atendimento. No dia seguinte fui pronta e diligentemente atendida.

Este episódio questiona a afirmação em tom glorioso sobre o sucesso da nova medida, porque ajudou a dissipar a densidade de pendências; quantos casos idênticos estarão a acontecer mitigando o verdadeiro problema dando a ilusão de uma solução maravilhosa?!

Mas o SNS ainda tem muito para oferecer para ser roído. Como já aconteceu com outros aspectos, agora é a proposta (feita aparentemente de forma discreta) sobre quem tem direito ao SNS. Os Administradores de Hospitais são de opinião que os jovens, sem problemas de saúde, podem ser excluídos do SNS, aliviando este e libertando mais os actuais médicos insuficientes e assoberbados. Sugestão absurda e maquiavélica! A Federação dos Médicos já criticou a sugestão porque o SNS é universal, não discrimina grupos da população seja qual for o critério. É apenas mais uma sugestão que causa o alarme, a intranquilidade. Como se pudéssemos aceitar que alguém fosse excluído com base no critério sem fundamento de que a juventude é imune à doença. Não há imortais, quem melhor que os médicos para o saberem?! É uma sugestão maliciosa que insidiosamente fará o seu caminho, subvertendo a verdadeira essência do SNS e provocando mais um abalo na estrutura do estado social. À direita não lhe basta actuar às claras; procura sempre lançar as sementes da confusão e da insegurança com o objectivo de estilhaçar o que ainda lhe escapa ao controlo.

Maria Luísa Cabral
Sobre o/a autor(a)

Maria Luísa Cabral

Bibliotecária aposentada. Activista do Bloco de Esquerda. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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