Faltou pompa à conferência de Davos, o tempo não está para isso, mas lá se ouviram algumas paradoxais reafirmações da ‘davologia’, a fé na globalização. O problema é que a globalização é como um gambozino, toda a gente fala dela e já fugiu: na pandemia, vários países foram incapazes de fornecer máscaras aos cidadãos e não se esquece a corrida mundial aos ventiladores; agora, falta leite em pó para bebés nos EUA porque os quatro produtores dominantes não conseguem importar materiais; e 400 milhões de pessoas são ameaçadas de fome porque há toneladas de cereais bloqueadas nos portos ucranianos — não é preciso mais para perceber que a globalização, onde resultou, teve consequências prejudiciais. Mas o seu maior impacto é a desigualdade. Esta semana foram conhecidos os números que resumem essa forma de roubo.
Ficaremos todos bem
Como sempre que se reúne Davos, a Oxfam publica o seu relatório sobre a desigualdade. Conclui que, ao longo da pandemia, por cada 30 horas houve mais um milhão de pessoas a viver em pobreza extrema e surgiu outro multimilionário (com mais de mil milhões de dólares), 573 no total, um número que, naturalmente, só considera a riqueza declarada e ignora os proveitos do crime. A novidade está no vigor desse crescimento: durante os dois anos os bilionários acumularam mais riqueza do que nos 23 anteriores, passando a deter 14% do PIB mundial (em 2020 tinham 4,4%). O êxito ocorre em três setores, a alimentação (mais 62 bilionários), a farmacêutica (mais 40) e a energia. Para resumir tudo, as dez pessoas mais ricas têm um património que vale tanto como o dos 40% mais pobres do planeta.
A globalização é como um gambozino, toda a gente fala dela e já fugiu: na pandemia, vários países foram incapazes de fornecer máscaras aos cidadãos e não se esquece a corrida mundial aos ventiladores
Há várias explicações para estes sucessos e nenhuma delas é o mérito destes multimilionários. Há as circunstâncias da crise da globalização, por exemplo a fragmentação do sistema financeiro, que favorece os intermediários; há a crise da energia, agravada pela invasão da Ucrânia e pelos realinhamentos do mercado dos combustíveis fósseis, que favorece os rentistas mais pujantes; há a crise sanitária, que tem canalizado rios de financiamento e reforça o poder oligopolístico no setor farmacêutico. O mal do outros foi o seu bem. Em todos estes casos, trata-se de desastres sociais e não será dos menores dos seus efeitos que esta injustiça se vá sentindo no mundo.
Correr atrás do prejuízo
Há outras formas de enriquecer que são ainda menos confessáveis. A primeira é a injustiça fiscal. Biden, que já falhou outras tentativas de taxar os milionários, propõe agora um pagamento mínimo de 20% para quem tem mais de cem milhões de dólares, para corrigir um buraco na lei (quem vende ativos paga impostos, quem herda não paga). Hoje, as 400 pessoas mais ricas dos EUA pagam em média 8% de imposto sobre o rendimento e a taxa sobre esses 0,01% poderia gerar receitas de 360 mil milhões numa década, impondo mudanças na estrutura acionista de empresas como a Tesla. Ninguém duvida de que a proposta será recusada.
Uma segunda forma de enriquecer é a fraude. Em Portugal, foi revelada esta semana uma investigação judicial sobre 6 milhões em fundos europeus. O programa dos EUA para a pandemia, o Cares, registou uma fraude de pelo menos 4,5%, 100 mil milhões de dólares. No Reino Unido, a conta vai em 10%, cerca de 20 mil milhões de libras roubadas aos programas para a pandemia. Isto já tinha acontecido com os estímulos pagos após a crise de 2008. No entanto, nenhuma destas formas de enriquecer tem impacto comparável ao da desigualdade que mina as nossas sociedades.
Democracia liberal e elevador social
Michael Sandel, o professor de Filosofia de Harvard que publicou recentemente “A Tirania do Mérito”, tem uma explicação para a banalização desta desigualdade. Escreve ele que há os perdedores do processo recente de globalização (o rendimento real mediano de homens em idade ativa nos EUA é hoje menor do que há quatro décadas) e há os vencedores, que naturalizam o sucesso alegando o seu próprio mérito. Esta noção do triunfo de alguns e do fracasso de muitos enraíza-se, como todas as ideias poderosas, na ancestralidade religiosa, a de um deus omnipotente que pune e recompensa. O mérito seria abençoado pela divindade, medindo a devoção ao trabalho e a obediência ao mando, segundo o cânone da Reforma. A acumulação de capital seria assim o deus ex machina da modernidade. Mas é a partir daqui que Sandel é mais original, ao discutir como o discurso desigualitário justifica que se castigue o pobre, o falhado na inevitabilidade globalizadora.
Diz ele que o mercado, prometido como gerador da meritocracia, reforçou o monstro da desigualdade ao ponto do grotesco. Quando dez multimilionários têm tanto quanto 3,1 mil milhões de pessoas, a ideia de que é pelo mérito que se sobe ou que pode haver redistribuição é uma ilusão, dado que não há reconhecimento de um bem comum. Nesse contexto, o conceito de mobilidade social tornou-se um sarcasmo. De facto, as economias mais liberais (os EUA) têm menor mobilidade intergeracional do que as do norte da Europa e até do que outras igualmente desigualitárias mas não liberais (a China). Conclui Sandel que, neste bloqueio, só sobra o ressentimento dos perdedores. Ou seja, a desigualdade é o roubo da identidade democrática e o seu tormento explica a desagregação da vida contemporânea, ou ainda a virulência da peste populista, que é o discurso dos milionários para os desprezados. Estamos em guerra, que já começou há muitos anos.
Artigo publicado no jornal “Expresso” a 27 de maio de 2022