Portugal é legalmente um país laico, independente de qualquer religião, e esse deveria ser o saudável princípio do Estado, não pondo em causa as crenças pessoais de cada um.
É sabido que, num contexto histórico do passado, foi assinado um convénio com o Estado do Vaticano que contraria este princípio e que privilegia fortemente a Igreja Católica Romana, a chamada “Concordata com a Santa Sé”, que coloca na mão da igreja benesses de que mais nenhuma outra religião usufrui, tornando-a uma espécie de religião do Estado.
Este acordo tem acarretado problemas para a Republica sob diversos pontos de vista, desde o social, o cultural, até ao financeiro.
Grande parte dos Estados da Europa já de libertou, há muito tempo, de uma certa dependência da Igreja de Roma, resquícios longínquos que ficaram da herança que radica do final do Império Romano, da organização feudal que se lhe seguiu, das lutas da Reconquista Cristã Peninsular e das Cruzadas a Jerusalém no sentido de libertar a Terra Santa dos Muçulmanos.
A viagem no tempo continuou com a conhecida evangelização de novas terras, pela conquista e rapina nas costas de África, da Ásia e das Américas, bem como a prática esclavagista e a deslocação para a Europa e para as Américas de centenas de milhares de Africanos para o trabalho nas explorações agrícolas de colonos europeus. Com tudo isto a igreja permaneceu conivente e aproveitadora. São muito raras as vozes de então que se ouviram, mas nenhuma sobre os africanos.
Posteriormente, foi no contexto do desenvolvimento do comércio internacional e dos movimentos da Reforma Protestante, que a igreja enquanto instituição, reformulou o tribunal medieval da Inquisição e impôs uma opressão brutal sobre a vida social, política e cultural dos povos com a perseguição dos Judeus, os autos de fé e o confisco dos seus bens, com o apoio das monarquias absolutas.
Foi já no século XIX, com o desenrolar da Revolução Liberal de 1820 que se pôs fim à Inquisição e se condicionou o poder da Igreja, impondo o fim das ordens religiosas.
Após a implantação da Republica em 1910, há a tomada de medidas em direcção à construção do estado laico, levando parte do clero a aliar-se aos monárquicos reaccionários e a apoiar os levantamentos armados e as malfeitorias dos trauliteiros.
Estas lutas criaram um certo anticlericalismo e abriram profundas divisões sociais que em nada beneficiaram as tentativas de reformas republicanas. Na continuação dessas actividades, o radicalismo monárquico esteve por detrás do 28 de Maio de 1926 e durante os 48 anos da ditadura do Estado Novo.
Durante o período da Guerra Colonial, a igreja católica, com algumas dignas excepções, continuou sempre ao lado do poder político, tornando-se conivente com os crimes praticados.
Não é possível, nem seria honesto, esquecer a posição de alguns católicos e de membros do clero que se opuseram à ditadura e à guerra colonial, sem a solidariedade da hierarquia da igreja, embora, num período de quase cinquenta anos, o seu número seja diminuto.
A democracia de 74, talvez por temer reeditar as fracturas sociais da 1ª Republica, mostrou-se extremamente condescendente, mesmo quando alguns conspiraram contra ela e davam o seu apoio a grupos de extrema-direita, com práticas violentas, terroristas, causadoras de mortes. Mesmo assim o Estado manteve a Concordata e concede à Igreja de Roma privilégios e benefícios fiscais.
Grande parte desta situação ficou a dever-se ao facto de uma organização católica, a Opus Dei, uma elite da igreja católica, ter representantes e influencia no centrão dos interesses, PS,PSD e CDS, o que se pode verificar pela constante corrida ao beija-mão de dignitários católicos a que continuamos a assistir. Há situações em que parece vivermos num Estado confessional.
Assim, o princípio democrático e constitucional da liberdade religiosa e de crenças não tem sido respeitado, porque a sua primeira condição é a neutralidade religiosa do Estado.
Num momento de grandes dificuldades, de salário baixos, de falta de habitação e de super-exploração capitalista, o Estado central e as autarquias de Lisboa, Loures e Oeiras resolveram investir cerca de 161 milhões de Euros numa iniciativa de mobilização e proselitismo religioso católico, com a presença do Papa, acolitado pelo Presidente da Republica e por membros do governo, Ora deveriam ser estes os primeiros a respeitar e a fazer respeitar a Constituição e a laicidade do Estado. Convém lembrar que esta mesma atitude não foi seguida em Espanha onde actividades idênticas se realizaram e onde o Estado não financiou tais eventos.
Para mim que sempre defendi a separação entre Estado e as igrejas, convicto defensor da liberdade de crenças e descrenças, causa-me apreensão assistir ao que parece ser a agonia do Estado laico, que considero pilar fundamental do regime democrático.
