Decifrar Montenegro

porManuel Afonso

17 de setembro 2024 - 16:48
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Não é na disputa dos mais de 20% à sua direita que o PSD parece estar focado, mas na disputa do centro – com uma política de direita. Isto pode explicar a lógica de Montenegro nas negociações do Orçamento de Estado para 2025.

Dizem os comentadores que Luís Montenegro se tem destacado pela gestão das expetativas e dos silêncios, fazendo nisso lembrar Cavaco. O que parece um elogio pode ser lido como o oposto: trata-se de um governo de quem pouco se espera e que ganha em estar calado. E a comparação com o economista de Boliqueime fala por si. Contudo, à esquerda, não havendo expetativas, convém haver diagnóstico. Política é prever. Oposição exige compreender o adversário. Os governos são como a Esfinge, devoram quem não os decifra.

Parte de nós não levou a sério o “não é não”. Da primeira vez, parecia um truque de linguagem; depois, uma manobra eleitoral; já no governo, uma promessa a ser contornada por jogos de bastidores. Motivos para desconfiar não faltam: por todo o mundo, o antigo centro-direita radicaliza-se e dá as mãos à extrema-direita, sobretudo quando dela precisa para manter o poder. Veja-se o recente golpe de Macron em acordo com Le Pen. Montenegro não é diferente. A direita liberal portuguesa tem vínculos com a extrema-direita que, a qualquer momento, podem ser ativados. Houve já alguns sinais nesse sentido – na eleição da presidência da AR, não fosse a jogada de Ventura, ou nas alterações à lei da imigração. Ou na Madeira e nos Açores. Contudo, há que assumir: nestes meses, não foi para Ventura que Montenegro se virou. Naturalmente, a AD não se negará a receber os votos do Chega e da IL para aprovar diversas das suas medidas. Mas, no que diz respeito à sustentação do seu governo ultra-minoritário, Montenegro parece não querer depender do charlatão de Mem Martins.

Ao mesmo tempo, quem esperava um rolo compressor austeritário, enganou-se. Já se previa que a AD abriria (até certo ponto) os cordões à bolsa. Negociou com professores, cedeu às forças de segurança, beneficiou militares. Mais: anunciou um passe ferroviário nacional a 20€ (veremos quando e como) e um suplemento extraordinário aos pensionistas. São medidas pífias. Mas não são cortes, austeridade e cativações. Ao mesmo tempo, avançam a todo o gás as políticas que são, para a AD, estratégicas: borlas fiscais aos mais ricos, privados a gerir unidades de saúde públicas, privatização da TAP. Maquiavel aconselhava aos governantes que fizessem o mal assim que subissem ao poder, de uma só vez, prolongando depois, ao longo dos anos, as medidas populares. Montenegro parece ter outra receita: fazer o “bem” – superficial, mas de efeitos imediatos – ao mesmo tempo que aplica o “mal”, profundo, mas cujas consequências só se sentirão mais adiante. Numas eventuais eleições no curto prazo, o mal estará feito, mas só as medidas palatáveis estarão na memória e no goto dos eleitores.

O que depreendemos daqui? Que, para já, e ao contrário de outras vozes que se fizeram sentir no PSD – sobretudo os arautos da seita sebastianista passista –, a tática de Montenegro parece ser a de ganhar ao centro. Não é na disputa dos mais de 20% à sua direita que o PSD parece estar focado, mas na disputa do centro – com uma política de direita. Isto pode explicar a lógica de Montenegro nas negociações do Orçamento de Estado para 2025. Foca-se em confrontar o PS, exigindo de Pedro Nuno Santos uma capitulação total, o que apagaria politicamente o PS, levando-o, provavelmente, a uma crise interna. Destronar os “socialistas” do papel de “partido charneira” pode ser a intenção e a consequência desta jogada. Ou, caso Pedro Nuno resista e vote contra, Montenegro poderia apostar em comer eleitorado ao PS numas eleições antecipadas, para, sozinho ou coligado com a IL, vir a governar em maioria, face a um Chega marginalizado e a um PS diminuído. Ocupar o centro, conviver com as direitas extremas, apagar o PS e isolar a esquerda – para avançar com um programa ultra-liberal. Parece ser este o plano do líder da AD.

Que conclusões podemos, à esquerda, retirar daqui?

Um: não se pode descartar o cenário de eleições antecipadas. Caso Pedro Nuno tenha mão firme e chumbe o OE25, Montenegro pode manter o “não é não” e preferir ir a votos a um acordo com o Chega. De resto, Ventura parece já o ter entendido.

Dois: o PS está numa encruzilhada estratégica. Se se ajoelha em nome da estabilidade, desmoraliza-se. Se chumba o OE, prova o veneno que, há poucos anos, serviu à sua esquerda. A solução seria um chumbo do Orçamento que assinalasse uma viragem à esquerda, uma rejeição do “costismo” e das “contas certas” e a defesa de um programa coerente de direitos sociais, serviços públicos e liberdades democráticas. Aí, sim, haveria bases para entendimentos à esquerda com substância real. Devemos continuar a lançar essa exigência a Pedro Nuno Santos. Mas sem ilusões. Como disse Mariana Mortágua no encerramento do Fórum Socialismo, “o fracasso do PS e do PSD, na saúde como na habitação, não são incompetência. São uma política que nos revela quem manda no país”. Não há sinal de que o PS descole desta política de décadas.

Com abertura para alianças “republicanas” pontuais contra o fascismo, mas sabendo que o caminho é pela esquerda. Esse continua a ser o desafio estratégico nesta fase

Três: este cenário é muito perigoso. Montenegro a querer crescer ao centro não significaria uma contenção da governação neoliberal nem um travão à extrema-direita. Com o PS apequenado e a esquerda numa situação difícil, a AD polarizaria, essencialmente, com o Chega. A direitização nacional iria extremar-se. O neofascismo seria o beneficiário estratégico. Na ausência de mobilizações sociais maciças, que invertessem a correlação de forças, a AD revelar-se-ia um estágio intermediário na deslocação do poder rumo à extrema-direita.

Quatro: o desafio à esquerda é enorme, mas não é desesperado. Pelo contrário. O segredo está na unidade para lutar. Os movimentos sociais não estão derrotados; as lutas laborais não estão em ebulição, mas existem pontos de apoio – vejam-se as greves dos médicos e nos transportes. A divisão da esquerda não é, sobretudo, uma questão eleitoral, mas uma fragmentação objetiva das forças que podem falar para milhões e mobilizar dezenas de milhar. Pela casa, o salário, a escola, a saúde, a igualdade, o planeta. Em França houve unidade nas eleições como resultado da unidade nas ruas, não o inverso. Há muita coisa que não se repetirá na comparação dos dois países, mas esta lição é transversal: é preciso construir um campo social massivo, assente em espaços e programas unitários de combate, que queiram mudar a vida de quem trabalha. Sem compromissos com que nos trouxe até aqui. Com abertura para alianças “republicanas” pontuais contra o fascismo, mas sabendo que o caminho é pela esquerda. Esse continua a ser o desafio estratégico nesta fase. A alternativa é a rampa deslizante à (extrema) direita e a marginalização da esquerda anticapitalista.

Manuel Afonso
Sobre o/a autor(a)

Manuel Afonso

Assistente editorial e ativista laboral e climático
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