O sol assemelha-se a uma bola de fogo no céu, de um laranja saturado. Ao longe, a paisagem desvanece-se por entre o fumo. E o ar, esse, é pesado e transporta cinzas que se depositam por todo o lado. Numa semana em que o país volta a implodir em chamas, é inevitável falar de incêndios.
Escrever sobre a devastação do Fogo é sempre emocional. À cidade só chega o rastro secundário do horror; mas para todos os que têm na Serra uma parte da sua identidade, é de pertença e de perda, de comunidade e de solidão, que estamos a falar.
Esta abordagem não deve, todavia, confundir-se com aqueloutra que nos é alimentada por certos diretos televisivos. Aí exploram-se as emoções com um fito sensacionalista, nas imagens e nas entrevistas desconfortáveis aos locais; e, simultaneamente, expurgam-se as emoções para comentar de forma ascética as causas da catástrofe e atribuir culpas. Esta abordagem, que se tornou popular também entre a classe política, obsta ao debate que realmente é necessário – um debate profundo, precisamente, sobre cultura, identidade, pertença, comunidade e solidão. São vários, portanto, os tópicos omissos no espaço público, entre os quais alguns "elefantes na sala".
O mais ostensivo desses elefantes é, sem dúvida, o eucaliptal e a canibal indústria da celulose. O eucaliptal português é um dos maiores do mundo. Compete apenas com as áreas de eucaliptal da Índia, do Brasil, da China e da Austrália. Não será necessário um grande esforço mental para concluir que a percentagem de território nacional coberta por eucalipto é muito superior à desses países, contando todos eles com territórios extraordinariamente maiores que o nosso. Portanto, em termos relativos, o eucaliptal português toma claramente a dianteira. Este facto, por si só, deveria suscitar a mais aguda suspeita, desde logo porque o eucalipto é nativo da longínqua região australiana, não sendo, por isso, uma espécie autóctone e apresentando caraterísticas específicas para condições bem diversas das nossas.
A ocupação massiva do território nacional com eucaliptal deve preocupar-nos porque se trata de uma árvore altamente inflamável, que seca os solos e os lençóis de água e não se integra facilmente nos nossos sistemas agro-silvo-pastoris, dada a sua relação com outras espécies, não só de flora mas também de fauna. Não se trata de catalogar as árvores como boas ou más, mas antes de reconhecer que as espécies assumem caraterísticas particulares diretamente ligadas às condições do local de origem. A respetiva disseminação descontrolada em regiões marcadas por condições biofísicas completamente diferentes implica uma incompatibilidade inexorável entre as caraterísticas da espécie e as condições locais. Essa incompatibilidade pode tornar-se perigosa. Por cá, tornou-se mortal.
A pergunta que se deve colocar é a de saber porque é que o eucaliptal se expandiu de forma dramática em Portugal. Dois dados são cruciais para a resposta: primeiro, a estrutura da propriedade florestal; segundo, os interesses económicos associados
A pergunta que se deve colocar, portanto, é a de saber porque é que o eucaliptal se expandiu de forma dramática em Portugal. Dois dados são cruciais para a resposta: primeiro, a estrutura da propriedade florestal; segundo, os interesses económicos associados. Portugal apresenta uma das mais baixas percentagens de floresta pública da Europa. A enormíssima maioria do território florestal português é detida e gerida por privados, estando dividido em micro-parcelas que pouco interesse têm, individualmente consideradas, para os respetivos proprietários. Este quadro, associado, claro, às amargas condições socioeconómicos de muitos dos pequenos proprietários do interior, conduz a dois cenários comuns: o abandono dos terrenos ou o respetivo arrendamento a terceiros. Quanto ao primeiro cenário, cabe dizer que a desertificação e o êxodo forçado de muitas famílias do interior são fatores que não podem ser ignorados quando se aborda a problemática dos incêndios florestais. Quanto ao segundo, importa considerar o outro elemento acima apontado: os interesses económicos que fizeram do eucalipto uma indústria colossal. Portugal é um dos maiores produtores de pasta de papel do mundo, mais uma vez concorrendo com países de territórios muito mais vastos que o nosso. Para alcançar esse patamar, o setor concentrou-se significativamente, dando origem a enormes grupos empresariais, mormente a Altri e a The Navigator Company, que arrendam a amiúde os pequenos terrenos perdidos por essas serras. O poder descomunal desta indústria, que apresenta lucros multimilionários todos os anos, tem-se reproduzido em formas mais ou menos insidiosas de lobby na sociedade e política nacionais – basta considerar as inúmeras parcerias com a academia ou as portas giratórias entre as maiores empresas papeleiras e cargos políticos e governamentais, bem como a narrativa constantemente propalada sobre a importância social do eucalipto.
Aqui chegados, são muitas as perguntas que, coletivamente, se impõem. Todas elas pressupõem a coragem, que pouco se vê nestes dias, de estabelecer as ligações que têm de ser estabelecidas. Entre o modelo bacoco de desenvolvimento nacional e a despovoação do interior. Entre a expansão desenfreada do eucaliptal e o agigantamento de uma indústria que cada vez mais estende os seus tentáculos a todas os setores da sociedade, da cultura à educação. Entre os lucros multimilionários de alguns e a perda irreversível da identidade e ligação à terra de outros. Entre a leniência (e conivência?) estatal e a ocupação e destruição criminosa da floresta desocupada. E, claro, entre tudo isto e a dimensão e gravidade crescentes dos incêndios florestais em Portugal.
Para todos aos quais falta a coragem de colocar estas questões, fica o convite para vir conhecer a nossa Serra, percorrer as apertadas estradas nacionais do interior centro e norte, ouvir as estórias do que foi e do que é e, sobretudo, admirar a imensidão esmagadora do eucaliptal.
Artigo publicado em Sábado a 22 de setembro de 2024