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Dantes

Talvez tenha chegado a hora de dizer que a porrada que agora é dada nas manifestações é já velha e tresanda dolorosamente a um passado.

Dantes, a mostarda era a Savora. Dijon era só uma cidade francesa.

A maionese fazia-se em casa, o azeite pingava ritmado, cada pinga a engrossar a gema prévia.

Dantes, abria-se o ar ao carro para que pegasse e o puré de batata era feito de batata que se cozia e moía num passe-vite.

 

Dantes apanhava-se porrada nas manifestações.

 

Dantes, havia grandes latifúndios no Alentejo.

A bem-aventurança ociosa dos latifundiários alentejanos era semelhante no ócio e no poder à brutalidade da bem-aventurança colonial, com um batalhão de escravos a consumir-se na servidão.

Os industriais eram poucos e protegidos e os banqueiros pertenciam a um outro planeta.

Dantes, em Portugal, os fascistas não eram religiosos nem místicos. Eram beatos.

Não eram solidários. Eram irritantemente caritativos largando as esmolas com a ponta dos dedos para não sujarem as mãos.

 

Dantes apanhava-se porrada nas manifestações.

 

Dantes, os fascistas eram de uma intolerância mesquinha, eram censores omniscientes que decidiam do bem e do mal, mesmo nas coisas mais íntimas, nos territórios mais privados. Impunham regras morais, leis imperativas, que violavam na primeira esquina. Mandavam-nos no pensamento.

Eram mestres sem a compleição do professor, só a autoridade excessiva que exalava medo lhes dava poder.

 

Dantes apanhava-se porrada na escola e nas manifestações.

 

Os fascistas eram uma espécie de seminaristas que iam às putas e pregavam o celibato.

O fascismo português aconteceu num tempo que foi o tempo do fascismo europeu.

Depois, quando esse tempo se esvaiu com estrondo e com os grandes impropérios com que sempre a infâmia cai, ficou na dele, sonso e mau, a pairar por cima do dito tempo, amedrontado e ruim, a fazer-se de parvo e a tentar entrar na festa dos vencedores que por sua vez se fizeram igualmente de parvos, esquecidos, dissimulados, utilizando os grandes equívocos com que se sempre se perpetuam as canalhices que dão jeito.

A Europa naquela brasa libertária dos fins festejados, a curar a bebedeira da guerra e a impor direitos, e a violência ibérica a ronronar para fora, pianinho, e a uivar e torturar para dentro, na acústica da continuidade. Diziam, estamos aqui e aqui vamos ficar. Aqui a democracia não põe o pé. Acalmem-se. Todos. Os que tinham medo que caíssemos e os que tinham esperança que nunca mais nos levantássemos.

 

Dantes havia provocadores por todo o lado. Bufos.

 

Dantes apanhava-se porrada nas manifestações.

 

Há violências e violências. Há violências como o garrote na pescoceira, e há outras como o garrote nas almas. A violência do fascismo português pertenceu a esta última categoria. Deram-nos cabo do olhar. Incutiram-nos o hábito da obediência. Proclamaram a inevitabilidade como o templo sagrado de todas as orações.

 

Dantes, apanhava-se porrada nas manifestações.

 

A televisão era RTP. Acabava à meia-noite com o hino nacional.

Havia pessoas que passavam fome. Havia pessoas que emigravam porque o seu país, este país, lhes havia fechado as portas. O pão era contado. O pão era tímido. Nos centros das cidades havia comércio e gente.

Havia pessoas que não tinham casa.

 

Dantes apanhava-se porrada nas manifestações.

 

Que fotografias mostraremos aos que virão a seguir sobre este tempo que somos?

Serão assim tão diferentes daquelas que os nossos pais nos mostraram?

Como vamos explicar-lhes esta vida pouca, este marasmo, esta agonia, este mês sobrante, esta falta de salário que consome quotidianos, estas dívidas perpétuas que nos acorrentam…

Como vamos dizer-lhes que perdemos o tempo em que havia catorze salários por ano, em que era possível afirmar que a universidade não era só para ricos, o tempo em que perdemos um sistema de saúde, em que perdemos, perdemos, e perdemos…

Como vamos explicar-lhes que ouvimos, que consentimos, os paleios de um ministro lesma, com aquelas lérias sincopadas, a babar-se de números, a bolçar défices, a cuspir na nossa vida, a pagar com o nosso dinheiro dívidas que não são nossas, a distribuir dividendos indevidos à custa dos dias maus em que passamos mal…

Como vamos justificar a permissão que demos ao insulto da inteligência…

 

Como vamos provar-lhes que não queríamos lá em cima esta gente bondosa e paternal que tira o cinto e espanca com o amor do pai educador pelo proficiente frémito da chibata, portanto com as melhores intenções. Os pais espancadores agiam sempre no interesse dos filhos. Pelos melhores motivos.

 

Talvez tenha chegado a hora de dizer que podem ficar com esses princípios, valores, leis, procedimentos, podem ficar com os ministros grandes e pequenos, podem guardá-los onde quiserem. Que já chega de tanta bondade.

Que a porrada que agora é dada nas manifestações é já velha e tresanda dolorosamente a um passado, a que em vésperas de Abril é preciso fechar a porta.

 

É que dantes se apanhava porrada nas manifestações.

E nos olhos, bem na íris, mesmo no centro, na menina, na pupila que contém um orifício regulável por onde passa a luz, havia o cansaço que a humanidade transporta consigo desde os tempos imemoriais da escravatura.

Já não estamos cansados deste poder?

Estamos em vésperas de Abril e dantes apanhava-se porrada nas manifestações.

Sobre o/a autor(a)

Advogada, dirigente do Bloco de Esquerda. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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