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Da Relvinha a Farha

Sei da Relvinha e digo que a luta dos moradores e a sua organização é o que dará resposta à vergonha que é o retrato tão verídico feito neste relatório [Farha, sobre habitação].

Faz agora 60 anos. Em Coimbra, 28 famílias desalojadas da zona da Estação Velha foram instaladas num conjunto de barracas de madeira numa zona chamada Relvinha. As barracas eram um insulto à dignidade das pessoas – chão de cimento, humidade a escorrer, amontoados de lama como arruamentos, falta de abastecimento de luz e de água, não recolha de lixo, ratos a proliferar, e tantos outros atentados aos direitos mínimos das pessoas.

A comunidade da Relvinha rapidamente formou a consciência conjunta da denegação de direitos a que estava sujeita. Vá-se lá saber como, um dia houve uma fossa sética que rompeu e o conteúdo caiu à porta do prédio onde viva o Vice-Presidente da Câmara de Coimbra… E vá-se lá saber como mas, de vez em quando, juntavam-se sacos de lixo nas escadas da casa do Presidente da Câmara… Mas as condições da habitação das gentes da Relvinha não mudavam.

Veio o 25 de abril e em 28 de fevereiro de 1975 foi fundada a Associação de Moradores do Bairro da Relvinha. A vida das pessoas pôde finalmente mudar. Os moradores juntaram-se num esforço conjunto entusiástico de autoconstrução – “a gente dizia: ‘olha, amanhã é preciso pôr piso naquela’, ‘amanhã temos que levantar umas paredes naquela’. E toda a malta; ‘então amanhã lá estou’”, lembrou um dos moradores dessa grande epopeia da Relvinha. E vinham estudantes, e vinham empresas, e vinha muita gente. E a Relvinha ficou um bairro. E, mais que tudo, ficou uma comunidade que continua junta para lutar pelos direitos dos moradores. É que hoje, 42 anos depois da grande mobilização, é preciso como nunca lutar por um direito a uma habitação digna…

Lembro a Relvinha ao ler o Relatório de Leilani Farha, relatora especial das Nações Unidas para a Habitação que analisa o impacto das políticas de austeridade sobre o direito à habitação em Portugal. E vejo no relatório observações como a de que uma em cada quatro pessoas em Portugal tem dificuldades em manter a sua casa quente. Leio que existem só 120 mil fogos para pessoas com grandes debilidades económicas. Leio que apenas dois por cento do parque habitacional é destinado a habitação social. Leio que os despejos forçados “são uma grave violação do direito internacional e dos direitos humanos, sendo por isso proibidos”.

Sei do Bairro da Torre, em Loures, sei das “ilhas” do Porto, sei do Bairro 6 de maio, na Amadora – e vejo-os retratados no Relatório Farha. Sei da Relvinha e digo que a luta dos moradores e a sua organização é o que dará resposta à vergonha que é o retrato tão verídico feito neste relatório.

Artigo publicado no diário “As Beiras” a 4 de março de 2017

Sobre o/a autor(a)

Professor Universitário. Dirigente do Bloco de Esquerda
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