O setor cultural foi dos primeiros a ser afetado pela pandemia de Covid-19. Os espetáculos foram cancelados, os museus fecharam portas, os cinemas pararam as exibições. A paralisação da Cultura começou na segunda semana de março de 2020. Quase um ano depois de ter sido declarado o primeiro estado de emergência, a situação dos trabalhadores e das estruturas do setor tem-se agravado significativamente.
As medidas de prevenção e contenção do contágio exacerbaram os problemas estruturais provocados por décadas de falta de investimento num serviço público de cultura.
Num setor com estruturas de produção caracterizadas por micro e pequenas empresas, profundamente marcado pela precariedade laboral e pela inexistência de um regime de trabalho e proteção social específicos, a desproteção das/os trabalhadoras/es é total.
Os apoios desenhados pelo governo são insuficientes e não chegam a todas/os. Trabalhadoras/es do circo, artesãs/ãos, artistas visuais, atrizes e atores, músicas/os, educadoras/es ou técnicas/os de várias especialidades estão há quase um ano sem conseguir trabalhar e sem rendimentos. Com a vida suspensa, muitas pessoas estão na situação dramática de não saber como pagar as contas e de ter de recorrer a cabazes solidários para sobreviver.
A mobilização das/os profissionais da cultura, através de manifestações e outras iniciativas, tem denunciado os problemas estruturais, a situação de crise económica e social que se aprofunda, o baixo valor dos apoios e tempos demasiados longos para a sua atribuição. Reivindicam a implementação de medidas mais abrangentes, menos burocráticas e que efetivamente cheguem a todas/os as/os trabalhadoras/es.
Os dados divulgados por organizações nacionais e internacionais revelam a profundidade e a extensão dos impactos das medidas restritivas introduzidas no combate à propagação do coronavírus. Os resultados do terceiro inquérito realizado pelo sindicato CENA-STE, por exemplo, demonstram o nível de precariedade do setor, indicando que apenas 12% das/os trabalhadoras/es que responderam têm contratos sem termo, 70% tem uma segunda atividade e que mais de 80% da atividade prevista foi cancelada ou adiada.
No final do ano de 2020, entre os “planos de desconfinamento” e estados de emergência, o setor somava perdas superiores a 70% relativamente a 2019. Segundo dados apresentados pela Associação de Promotores de Espetáculos, Festivais e Eventos (APEFE), entre meados de março e o final do ano foram cancelados, suspensos ou adiados cerca de 27 mil espetáculos.
O mesmo padrão é evidenciado pelos resultados do estudo “Reconstruir a Europa: a economia cultural e criativa antes e depois da COVID-19”, publicado no final de janeiro de 2021. Este estudo, encomendado à consultora internacional EY pelo Grupo Europeu de Sociedades de Autores e Compositores (GESAC), revela que as Indústrias Culturais e Criativas (ICC) “foram mais afetadas do que a indústria do turismo e ligeiramente menos que o setor do transporte aéreo”. No setor como um todo, as perdas de receita foram superiores a 30%, sendo as áreas da música e das artes cénicas as mais afetadas, com perdas na ordem dos 75% e 90%, respetivamente.
O setor da cultura, com vulnerabilidades estruturais que existem, está a ser devastado por uma tempestade. Apesar das múltiplas evidências dos efeitos nefastos da pandemia no setor, da contestação social e das reivindicações das/os profissionais, a cultura continua a ser relegada para um plano secundário na estratégia do Governo.
O Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), que o Governo apresentou à Comissão Europeia, enuncia as principais preocupações e linhas estratégicas para a recuperação económica de todos os setores. Embora o PRR seja considerado um instrumento fundamental que irá permitir ao país recuperar da atual crise provocada pela pandemia e responder às necessidades estruturais, no documento, que foi colocado em consulta pública entre 15 de fevereiro e 1 de março, não são definidas medidas específicas para a recuperação da Cultura nas suas variadas áreas e na necessária capacitação tecnológica, investimento em infraestruturas e apoio à internacionalização. Esta grave omissão denota a falta de investimento numa política cultural que garanta o futuro de um setor tão fundamental para a coesão social e para a qualidade da nossa democracia.
Se a inação do Governo persistir, a destruição do tecido cultural será irreparável. É urgente a mobilização de instrumentos que garantam uma resposta adequada à situação de calamidade que se vive no setor. São necessárias medidas robustas que permitam recuperar da atual crise provocada pela pandemia, garantindo que os apoios não deixem ninguém de fora e corrijam os problemas estruturais.
É uma tarefa fundamental do Estado garantir o direito constitucional à fruição e criação cultural. Cabe, assim, ao Governo, ao Ministério da Cultura, assegurar que, quando estes tempos sombrios se dissiparem, teremos ainda uma comunidade cultural capaz de garantir a possibilidade de acesso à cultura a todas as pessoas que vivem em Portugal e de promover a diversidade cultural. Para tal, é fundamental responder à crise de subsistência e precariedade crónica que historicamente afeta o setor. Tal implicará necessariamente uma alteração do modelo de financiamento da produção cultural e o reforço do orçamento da cultura.
Numa verdadeira democracia progressista, a Cultura deve ser um bem essencial a preservar e estimular.
Artigo publicado no portal Plataforma a 11 de março de 2021.