Cuidar de idosos, o direito humano que passou a negócio

porVítor Franco

15 de março 2023 - 13:45
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Ser idoso não pode ser o resto de um trabalhador que já não consegue vender a sua força de trabalho ou o resto de um ser humano sem dinheiro! A dita democracia liberal em que vivemos não é a que a dignidade e os direitos humanos exigem.

A propósito do lar da Lourinhã, a ministra Ana Mendes Godinho anunciou que “no ano passado, 117 lares de idosos foram fechados, 22 dos quais de imediato”. De acordo com informações antes prestadas ao PÚBLICO, “98 lares tinham sido encerrados em 2021 e 105 em 2020. Já em 2020, a Segurança Social identificou 788 lares ilegais”.

Também ao Público a Associação de Lares e Casas de Repouso refuta e diz: “quando a Segurança Social diz que encerrou 100 lares, não [os] encerrou de facto. Cerca de 90% são ordens de encerramento não cumpridas”. Acresce o que diz a Associação Nacional dos Gerontólogos (ANG) “A fiscalização das instituições é quase inexistente”!

Todas as pessoas sabem que o Estado se demitiu das suas responsabilidades com os idosos. O liberalismo, aplicado pelos sucessivos governos, optou por reduzir ao mínimo possível as responsabilidades e transferir os cuidados dos idosos para o setor privado e para a resposta da cidadania solidária.

Todas as pessoas sabem que a população e os ativismos cívicos fizeram criar e crescer uma rede solidária a que chamamos as Instituições Particulares de Solidariedade Social, grosso modo, associações locais e misericórdias. Também se sabe que os contratos que as IPSS têm com a Segurança Social são de permanente subfinanciamento, obrigando as instituições à obrigação de procura de outras receitas. Portanto, aquilo que o Estado devia pagar acabamos nós cidadãos por pagar por entreposta forma. Os lares de idosos privados surgem porque os cuidados com os mais fracos se tornaram um negócio, um bom negócio, multiplicaram-se como cogumelos e mesmo assim estão quase sempre cheios.

O que fazem as pessoas de menos recursos? Na incapacidade de tratar dos seus idosos recorrem a lares clandestinos ou que qualidade menor pois a condição dominante é ter dinheiro para pagar. São muitos milhares de pessoas assim, muitas vezes os idosos são maltratados no momento terminal da sua vida – o momento em que precisam do melhor trato possível. Centenas de pessoas permanecem nos hospitais porque não têm família de recurso e o Estado não tem respostas!

É o estado a que o Estado chegou. Aí está o melhor [pior] do liberalismo agora tão apregoado. O ser humano só tem direito a cuidados dignos enquanto der lucro. A dignidade humana é negócio, a Constituição da República é letra esquecida.

A resposta da população tem sido “obediência” ao sistema liberal quase não contestando as opções governamentais. Quase sem alternativas, muitos idosos sofrem o desterro, muitas famílias sentem-se mal na sua consciência, na sua impotência de melhor apoio aos idosos…

O problema é acrescido pelo aumento das doenças crónicas, das doenças degenerativas como o Alzheimer, Parkinson, Esclerose Múltipla, da deficiência, (...) da solidão fruto de famílias desestruturadas ou empobrecidas. O agravamento de doenças causa um sofrimento reforçado nas famílias incapazes de lidar com curativos, tratamentos especializados ou vigilância permanente. Ante a extrema debilidade do Estado Social / Segurança Social, muitos milhares de pessoas tornaram-se cuidadores informais porque não têm alternativa financeira ou de vida que não seja o cuidado do seu familiar.

O reconhecimento dos direitos dos doentes e dos seus cuidadores informais tem sido uma grande luta. O pouco do reconhecimento que conseguiram foi à custa de muito protesto, de muita ação cívica, de muitos apelos… A conquista dos tetraplégicos ao direito a ter Assistentes Pessoais, e não ser obrigado à institucionalização, foi árdua mas conseguiram-se algumas conquistas [que o diga a luta corajosa de Eduardo Jorge]. As temáticas do direito aos Assistentes ou da aposentação antecipada de pessoas deficientes dariam para mais dois ou três artigos, tal a morosidade e incompetência da governação.

Retomando o fio condutor inicial. Este país, que se quer democrático, precisa de construir uma Rede Nacional Pública de lares e cuidados domiciliários, suportada por mais profissionais especializados que permita a autonomia e melhor qualidade de vida aos idosos.

Ser idoso não pode ser o resto de um trabalhador que já não consegue vender a sua força de trabalho ou o resto de um ser humano sem dinheiro! A dita democracia liberal em que vivemos não é a que a dignidade e os direitos humanos exigem.

Deixo-vos com este artigo da Constituição da República Portuguesa.

Artigo 72.º As pessoas idosas têm direito à segurança económica e a condições de habitação e convívio familiar e comunitário que respeitem a sua autonomia pessoal e evitem e superem o isolamento ou a marginalização social.

Que se faça democracia!

Artigo publicado em maisribatejo.pt

Vítor Franco
Sobre o/a autor(a)

Vítor Franco

Dirigente do Sindicato dos Trabalhadores da Energia e Águas de Portugal, SIEAP.
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