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Cuidar da democracia

Por pouca confiança democrática que nos mereçam os recém-eleitos, Joe Biden, para a presidência e Kamala Harris, para a vice-presidência dos EUA, tudo é melhor do que a manutenção de Donald J. Trump e do seu perigoso clã à frente da Casa Branca, em Washington.

Não é líquido que tudo fique resolvido, como seria normal numa democracia, com os eleitos a governar e os derrotados a cumprir o seu papel de oposição. Tudo pode acontecer após os discursos de ódio de Trump a acicatar os seus apoiantes, incluindo os grupos armados e organizados de forma paramilitar, que logo se prontificaram a dar-lhe apoio.

Neste contexto com o afastamento do poder da família Trump e da sua corte, algo terá que mudar, para que o Trumpismo não acabe por sair vencedor na secretaria.

Não é fácil descortinar se o estado de mal-estar e fragilidade em que se encontra a democracia em todo o mundo, é motivado pela atuação de grupos como o de Trump e dos seus ideólogos, tipo Steve Bannon, ou se resultam precisamente do interior da própria democracia, sem respostas válidas às preocupações do povo, que olha para o futuro apreensivo e que vê os filhos a viver pior que os pais, perante as inconsistências da social-democracia e dos democratas liberais de direita, que parecem não acertar com o rumo a seguir, interessados apenas na manutenção do status quo, repetindo velhas práticas poeirentas.

Convém não esquecer que Steve Bannon, responsável pela campanha de Trump em 2016, foi o impulsionador da tentativa de reagrupamento da extrema-direita e dos populistas, incluindo os portugueses, que parece não ter resultado muito bem, mas que deu força a estes grupos por toda a Europa.

Um certo laxismo, falta de transparência e de firmeza, de impunidade perante fenómenos de corrupção, nas democracias ocidentais, têm permitido o crescimento larvar dos grupos populistas e de extrema-direita, que se vão alimentando dos recuos ideológicos destas e da deterioração das condições de vida das diversas camadas da população.

É esta a situação que se vive, de momento, no nosso país. Depois do descalabro do período megalómano e de corrupção em que governou José Sócrates e o PS, que provocou a sujeição aos ditames da troika, os governos PSD/CDS tentaram destruir o que restava dos serviços públicos, com profundo desinvestimento, na saúde, na escola e na segurança social, levando os trabalhadores a uma situação social profundamente deprimida, abaixo dos limiares da pobreza. No governo Passos Coelho também ocorreram episódios de corrupção a vários níveis do aparelho do Estado, quem não se lembra da compra de submarinos e carros de combate, privatizações inexplicáveis, e o mesmo nas autarquias e nos serviços, com uma aparente impunidade.

Nas eleições de 2015 foi possível criar as condições para que um governo do PS, apoiado no Parlamento pelas forças à sua esquerda, do Bloco de Esquerda, do PCP e dos Verdes, apresentasse um programa de recuperação dos rendimentos do trabalho e de investimento nos serviços públicos. Foi o tempo da chamada geringonça, designação dita em tom depreciativo, mas que foi acarinhada pela população. Nem tudo correu bem, dado que o governo PS, apesar dos compromissos assumidos, estava mais preocupado em fazer boa figura na União Europeia e dos valores orçamentados foi fazendo cativações, o que, na prática, retirou fundos para entregar à UE e reequilibrar a dívida pública e o défice. O Bloco foi denunciando a situação, porque se iam invertendo as prioridades, a falta de investimento nos serviços públicos, na saúde, na educação e na segurança social.

Nas últimas eleições legislativas o PS não se mostrou interessado numa negociação para a legislatura com os partidos à sua esquerda. Começou até uma deriva para a direita, em completa subserviência face ao Presidente da Republica, Marcelo Rebelo de Sousa, que nunca escondeu a sua encapotada preferência por um governo do centrão.

Com o eclodir da pandemia sanitária, ficou demonstrado que as faltas nos serviços citados eram reais, o que obrigou a uma corrida à compra apressada de material e equipamentos, não orçamentados, favorecendo os especuladores e dando razão às preocupações desde sempre manifestadas pelo Bloco.

Sem um reforço suficiente em termos de disponibilização de fundos e de contratação de pessoal de saúde, a segunda vaga de pandemia tem-se mostrado mais violenta do que a primeira e de difícil controlo. Por outro lado, a forma como se divulgam as regras de prevenção sanitária não tem surtido efeito suficiente junto das camadas mais jovens, o que pode ser um dos factores do enorme aumento da pandemia. Por tudo isto a situação a que chegamos é complexa, mesmo do ponto de vista político. Mas não é com ameaças fúteis ou promessas vãs que se irá resolver.

Ao mesmo tempo que se assiste à restrição de algumas práticas democráticas e a tentativas de normalização de ideologias, grupos e factos que põem em causa a democracia, como acordos com partidos antidemocráticos não podem, nem devem, ser encaradas de forma leviana escudando-se em princípios pseudodemocráticos, sob pena de estarmos a ser cúmplices da demolição da própria democracia.

A democracia não é um bem adquirido a título perpétuo e definitivo e está doente em muitos aspectos e pelo mundo, tem de ser cuidada no dia-a-dia e não apenas em tempo de eleições. Implica capacidade de negociação honesta, ajustamentos e cedências, mas também firmeza de propósitos, tendo em conta que governo ou oposição, ambos estão comprometidos na salvaguarda da mesma e que a vitória de quem quer que seja, é efémera.

Sobre o/a autor(a)

Reformado. Ativista do Bloco de Esquerda em Matosinhos. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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