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Crónica de uma ruptura anunciada

Com o caos nas urgências de obstetrícia, o número de portugueses sem médico de família a quase duplicar desde 2016, com a gratuitidade e acesso à IVG a ser uma miragem num terço dos hospitais públicos e um drama em tantos outros, este é o momento de salvar o SNS.

Os sucessivos governos de António Costa têm carregado o SNS como bandeira mas, nos últimos anos, foi a luta contra a covid que a agitou. A extraordinária resposta do SNS à pandemia criou, graças ao esforço e resiliência de todos os profissionais de saúde, uma ilusão de robustez, suficiência de meios e bom funcionamento global das instituições. Sem estabilidade na contratação e progressão nas carreiras, com o aumento dos profissionais tarefeiros sem vínculo e mais bem remunerados, com equipas mais pequenas e envelhecidas, sem autonomia, com a problemática da formação, horas extra e do cansaço acumulado sem incentivos de espécie alguma, assistimos a 2500 médicos e enfermeiros a abandonarem o SNS em 2020 e 2021.

Nada há de conspirativo quando se olha pelo retrovisor do passado recente e se constata que boa parte das razões que, antes das eleições legislativas, levaram o BE a votar contra os dois últimos orçamentos do Estado e que afastaram o PCP do último, apresentado em 2021, se confirmam. A ameaça de ruptura do SNS, provocada pela falta de investimento, pela ausência de visão estratégica e do mais elementar e devido respeito pelo esforço dos profissionais da saúde, estava identificada como uma das catástrofes no limite de acontecer e inscrita como a principal linha divisória traçada entre o Governo e os partidos à sua Esquerda. Nada se confirma agora que antes não se soubesse ou antecipasse.

A teoria da conspiração que assenta na possibilidade de o PS não se importar de destruir o legado de António Arnaut e de João Semedo, permitindo que o caos se instale até a um ponto em que os privados apareçam como a ajuda salvadora inevitável, não colhe mas resiste. Após as soluções transitórias propostas pela ministra Marta Temido, acompanhadas de uma repreensão pública aos organismos de administração e às instituições de saúde, tamanha indefinição e incúria permite todas as leituras. Desde a reivindicação de exclusividade proposta na nova Lei de Bases da Saúde, apresentada em 2017, até ao reforço dos meios e condições que permitam estancar a fuga de médicos e enfermeiros para o estrangeiro ou para o privado, quase tudo são promessas por cumprir.

Com o caos nas urgências de obstetrícia, a total incapacidade de alguns serviços em responder aos mínimos funcionais que evitem o encerramento, a ausência de obstetras, médicos pediatras e de enfermeiros, o número de portugueses sem médico de família a quase duplicar desde 2016, com a gratuitidade e acesso à IVG a ser uma miragem num terço dos hospitais públicos e um drama em tantos outros, este é o momento de salvar o SNS. Agora e de uma vez por todas, garantir o futuro da saúde pública e cuidar de fazer justiça aos seus profissionais.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” em 17 de junho de 2022

Sobre o/a autor(a)

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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