No exercício diário de esvaziar as nossas mentes, há uma avalancha de informação inútil, desarticulada, espartilhada e remendada que incessantemente nos invade os olhos e os ouvidos, por entre anúncios publicitários. Precisamos recordar: este verão tivemos a maior onda de calor dos últimos 500 anos na Europa; a China atravessou o verão mais quente alguma vez registado. Já vivemos a maior crise da história da Humanidade, mas as elites do capitalismo global só conseguem pensar em lucrar ainda mais. Para começar a parar esta crise o primeiro inimigo que temos de travar chama-se Gás “Natural”.
Temos de reconhecer a nossa incapacidade cognitiva de lidar com a dimensão do problema. A sucessão e velocidade de fenómenos de escala histórica a que estamos a assistir não tem paralelo: é como se o degelo final do Lago Agassiz, na América do Norte, a Peste Negra, a Primeira Guerra Mundial e a ascensão o nazismo na Itália e na Alemanha estivessem a acontecer todas na mesma década.
A comunicação social é incapaz de fazer esta comunicação e perde-se na espuma dos dias e em episódios tragicómicos intervalados com questões sérias, todas reduzidas a espaços similares que neutralizam a informação. Quando se introduz a dimensão “nacional” da informação, tudo piora: o que é melhor para Portugal, para Espanha, para França, como nos safamos no meio da crise X, quem é mais desenrascado e quem fica melhor na fotografia em negociações transformadas em ringues de boxe ou concursos de matreirice.
Há algo em comum em todas as abordagens: nunca tocar no problema central, nunca abordar o sistema capitalista construído em cima da energia fóssil que está a transformar todos os territórios do planeta num inferno perigoso. No meio de tanta confusão, a pulsão para o imobilismo, o cinismo e a hipocrisia são normais e ferramentas de autodefesa mental. No entanto, não são qualquer ferramenta para resolvermos o problema real.
Mesmo quando o assunto anda próximo da crise climática - o facto histórico e geológico mais relevante desde que há civilização humana - há uma série de escolhas para reiteradamente não se falar de como resolver esta crise.
Quando o assunto é custo de vida, há o cuidado de não o associar à inflação provocada pelos lucros recorde das empresas petrolíferas, em particular do gás natural. Até a Agência Internacional de Energia refere taxativamente: “Os altos preços da energia estão a causar uma enorme transferência de riqueza dos consumidores para os produtores, para níveis similares aos de 2014 no caso do petróleo, mas totalmente sem precedentes no caso do gás natural. Os preços altos dos combustíveis são responsáveis por 90% do aumento dos custos médios da geração de eletricidade a nível global, com o gás natural à cabeça, sendo responsável por mais de 50% do aumento.”
Perante esta realidade, o que os governos europeus estão a fazer é, em vez de controlar o gás e promover alternativas ao mesmo, expandir a sua infraestrutura e reforçar a nossa dependência dele (se não russo, saudita ou americano). Ao fazerem isto estão a reforçar a crise e a expandi-la ainda ao combaterem a inflação pelo aumento das taxas de juros. Garantem assim uma crise muito maior e mais dolorosa. Mas além de não funcionar, esta é uma resposta essencialmente negacionista das alterações climáticas e de quaisquer compromissos de travar o caos climático.
Todos os debates estão cada vez mais a anos-luz da necessidade real de cortar 50% das emissões até 2030 em relação aos níveis de 2010. Com a crise do custo de vida e com a crise energética, o sistema só pensa em voltar a aumentar emissões, continuar a crescer e abrir as portas a mais energia - gás, carvão, nuclear, renováveis - mesmo que seja para voltarmos a reforçar todas estas crises. Nenhuma delas pode ser resolvida sem resolver o conflito principal: o capitalismo está a corroer as bases materiais que permitem a existência de civilização humana como a conhecemos.
a crise do custo de vida é consequência da crise energética que foi criada pelas petrolíferas para conseguirem mais um enorme saque aos bolsos de quem trabalha
O capitalismo não só criou a crise climática, como está a agravá-la em todos os momentos. Precisamos de inequivocamente deixar claras estas ligações: a crise do custo de vida é consequência da crise energética que foi criada pelas petrolíferas para conseguirem mais um enorme saque aos bolsos de quem trabalha. Os governos garantem esta indústria e a contínua dependência de fósseis, despejando biliões de euros sobre eles e construindo a sua infraestruturas para mais décadas.
Sobre todas estas crises ergue-se a crise climática, existencial para nós. Resolvê-las-emos todas ou nenhuma. E quando digo nós estou a falar no movimento social e no movimento pela justiça climática. As instituições só funcionam para manter o sistema, isto é, para garantir o colapso. O capitalismo como um todo é a derradeira crise da Humanidade, mas neste momento o gás é um vector central que tem de ser travado.
Artigo publicado em expresso.pt a 15 de novembro de 2022