Portugal vive aquela que é porventura a maior crise institucional desde que a democracia e o Estado Social de Direito foram constitucionalmente consagrados. Esta crise tem duas faces distintas.
A primeira é a que se prende com as relações entre o poder judicial e o poder político. A demissão do Primeiro-Ministro por força das suspeitas contra si anunciadas em comunicado da Procuradoria-Geral da República, se lidas à luz da conhecida frase de António Costa “à política o que é da política, à justiça o que é da justiça”, exige uma explicação absolutamente clara ao país por parte do Ministério Público. De duas uma: ou há indícios consistentes de atividade criminosa do Primeiro-Ministro ou, não havendo, o anúncio público da existência de suspeitas ténues contra ele é irresponsável e deteriora objetivamente o regime democrático. De novo, de duas uma: ou os indícios do Ministério Público contra o Primeiro-Ministro são consistentes – e então mais que se justifica uma investigação – ou não são – e então estamos perante uma irresponsável judicialização da política, contra os pilares fundamentais do regime político constitucionalmente consagrado. É mais que urgente, é mais que exigível, um esclarecimento cabal do Ministério Público acerca da sua investigação à atuação do Primeiro-Ministro
Se o limite democrático do poder judicial é sempre o da não judicialização da governação, o limite democrático da governação é não dar azo à sua judicialização. Essa é a segunda dimensão de análise desta crise. E o que esta crise evidencia é que, vezes demais, a política em Portugal é feita de promiscuidade com os negócios. Vezes demais, a política é entendida como a competição por regimes de favor, negociados por entidades empresariais com governantes nacionais ou municipais. É para essa política que os “facilitadores” são decisivos, gente com um pé nos corredores do poder e outro na defesa dos ganhos empresariais (para as empresas e para si próprios, claro…). Essa forma de entender e fazer política, em que o interesse nacional é capturado por um punhado de empresas poderosas que usam tudo, até o clima, para conseguir negócios chorudos através de regimes de favor, tem no tráfico de influências o seu modo de ser. Porque é que nunca se erradicaram os vistos gold, apesar dos seus efeitos nefastos sobre o direito à habitação? Porque é que nunca se erradicaram os “planos de interesse nacional” (PIN) apesar dos seus efeitos nefastos sobre o ambiente e o ordenamento do território?
Na sua segunda comunicação ao país depois da eclosão da crise, o Primeiro-Ministro defendeu que, em democracia, ao executivo deve ser garantida a liberdade de ação governativa e que ela consiste na tomada de decisão governamental no campo do jogo de forças entre lobbies com interesses contraditórios. É uma conceção francamente discutível do que devem ser a governação e a ação política. Porque ela é a que mais facilmente torna os governos reféns de interesses particulares, potenciando o tráfico de influências pelos “facilitadores” como instrumento de poder, sobretudo quando se trata de atrair investimento estrangeiro.
Numa democracia não capturada pelos poderosos, a ação política é a imposição de regras iguais para todos e isso é o contrário dos regimes de favor que beneficiam os mesmos de sempre.
Artigo publicado a 16 de novembro no semanário Campeão das Províncias