Há três partidos orgânicos em Portugal, o PCP, o PS e o PSD, pela ordem da sua criação. Têm histórias obviamente incomparáveis, mas algo que os distingue dos outros: uma forma de implantação ou representação social baseada em estruturas (autarquias, sindicatos, associações patronais) que criam gravitações institucionais, sendo em cada caso uma conjugação específica. As estratégias do PS e do PSD basearam-se sempre no pressuposto de que essa estrutura era estável, pois os partidos tinham as suas bases próprias, organizadas por referências políticas, incluindo mitos e formas de sociabilidade grupal, e que o regime era a sua alternância, só raramente interrompida no passado por algum bloco central. A alternância teve a capacidade de organizar a política, subordinando todo o regime, dispensando até a apresentação de alternativas. Assim, os dois principais partidos orgânicos entenderam sempre que tinham o direito a governar por imposição paraconstitucional e que os que neles faziam carreira mereciam gratidão pública. Creio que ainda não se aperceberam de que continuam a definir a sua política para esse mapa precisamente quando ele se está a esvair. Sim, a crise de regime é, antes de mais, o desaparecimento da âncora institucional que foi a capacidade orgânica daqueles partidos. Na erosão do regime, pensam que ganharão eleições com a magia do passado e enganam-se.
Crise de regime
Essa forma de crise de regime não é exceção nos novos tempos. Pelo contrário, é a norma, e convém perceber a razão. A vitória sucessiva de bufões, desde Modi a Trump e Bolsonaro, depois Meloni e agora Milei, é o resultado da mistura entre o esgotamento do consenso em torno a um modelo de crescimento desigualitário, o esvaziamento de perspetivas sociais que alimenta o ressentimento e a sua expressão na vertigem em que as redes sociais são o meio de comunicação e de organização pública, com a consequente emocionalização imediatista e poluição do conflito de classes pelos ódios individuais. Não haverá regime político, como os conhecemos desde o fim da Segunda Guerra, que resista a esta transformação, que torna a bufonaria de extrema-direita o polo aglutinador da direita.
Metade do eleitorado de Ventura poderá ser dos fiéis que sempre votaram PS. Eis uma demonstração triste de como a crise do regime foi criada pelo desprezo social que a maioria absoluta exibiu
O desaparecimento dos partidos orgânicos tornou-se, por isso, uma das expressões das crises de regime. Foi o que aconteceu em Itália com o fim da Democracia Cristã e do PCI e com a emergência da extrema-direita e do 5 Estrelas; em França, com o esvaziamento dos gaullistas, do PSF e do PCF, substituídos por Le Pen à direita e França Insubmissa à esquerda, ou em Espanha, ou nos Países Baixos, ou na Alemanha. A depressão do regime não é fruto de movimentos inorgânicos, de perturbações judiciais ou de falta de líderes carismáticos, é sobretudo a expressão da sua incapacidade em responder à vida das pessoas, e assim caem esses partidos.
Três tipos de eleitorado PS
Há nos partidos orgânicos três tipos de eleitorado. Veja-se o caso do PS. O primeiro eleitor-tipo é o fiel dos fiéis, quem votaria sempre no partido. Sentem-no como uma família e uma devoção. Fazem parte. Ser do PS era a sua identidade, acontecesse o que acontecesse. O segundo eleitor-tipo é o que escolhe o PS por medo dos adversários e, em particular, da aliança do PSD com a extrema-direita, como aconteceu em 2022. É um voto emocional e que tem sido indiferente ao que faça ou prometa fazer um Governo PS: mesmo que esse eleitor estivesse convencido de que o Governo que vai apoiar destruirá o SNS ou pugnará pela especulação imobiliária, e disso discorde, ainda assim votou naquele partido. Foi esse eleitorado do medo que fez a maioria absoluta. O terceiro tipo é o que exige uma visão para o país, que escolhe entre alternativas programáticas e que se orgulha de ter votado em vários partidos, consoante a sua consciência.
Nas eleições anteriores, o PS contou com o primeiro tipo de eleitorado, fez tudo para mobilizar o segundo, para isso beneficiando tanto do argumento de que o país teria sido tragicamente abalroado pelo fracasso orçamental, como de sondagens falsas, e conseguiu o terceiro com a garantia da estabilidade. Dar-se-ão conta os seus candidatos atuais das perdas em qualquer destes eleitorados? Para o terceiro, ter sido o Governo a demitir-se e a alimentar intrigas e questiúnculas, escolhendo o Presidente como alvo, mostra que o partido não é confiável; para o segundo, o facto é que não houve qualquer barreira à extrema-direita, que cresceu como nunca com este Governo. O problema maior do PS, no entanto, é que parte do primeiro tipo de eleitorado o abandonou. Espanta-me que tal seja ignorado pelos seus chefes. É nesse sector popular que tem as maiores perdas, parte para a esquerda e sobretudo para o Chega. Metade do eleitorado de Ventura poderá ser dos fiéis que sempre votaram PS. Eis uma demonstração triste de como a crise do regime foi criada pelo desprezo social que a maioria absoluta exibiu. Nenhum subsídio responde a pessoas fartas de esperar, que sabem que o seu ordenado não paga nem a casa nem os dias, ou que descobrem que há envelopes de dinheiro escondidos num gabinete do palácio.
O facto é que se o regime são os envelopes, merece ser posto em causa. Só sabendo deste ocaso do regime é que a esquerda poderá falar com aqueles eleitorados populares e garantir-lhes segurança, respeito e soluções. Vai ser uma campanha como nunca se viu.
Artigo publicado no jornal “Expresso” a 24 de novembro de 2023