Um milhão de portugueses saíram à rua para comemorar os 50 anos da Revolução do 25 de Abril. “Fascismo nunca mais!”, gritou-se por todo o país. No entanto, vemo-nos hoje afrontados, mais uma vez, por uma sucessão de crimes de ódio racista. Os ataques a imigrantes na cidade do Porto fazem parte de uma tendência de crescimento e normalização da extrema-direita em Portugal. Na noite do dia 3 de Maio, um bando de neonazis percorreu ruas do Porto atacando imigrantes, com armas brancas e de fogo. Dois argelinos foram agredidos com tacos de basebol, tendo sido assistidos no Hospital de S. João. Por volta da 1 hora da noite, um grupo de 10 a 15 encapuzados forçou a entrada da residência de uma dezena de magrebinos e agrediu-os violentamente (um deles ficou com a cara irreconhecível, disse uma testemunha ao CM), partindo e destruindo mobiliário e haveres. Roubaram-lhes os capacetes das motos com que trabalhavam como estafetas de entrega de comida. Um dos imigrantes saltou de um segundo andar e fraturou um braço e uma perna. Mais tarde, um marroquino foi agredido por 8 homens com armas de fogo e roubaram-lhe o telemóvel. A PSP deteve, em “flagrante delito”, um suspeito que tem uma pena suspensa de 5 anos de prisão por vários crimes de ofensa à integridade física e confessou ter praticado outros crimes de ódio contra imigrantes nas últimas semanas, pelo que ficou em prisão preventiva. Pertence ao “Grupo 1143”. Segundo a CNN todos os 6 suspeitos já identificados têm ligações a este grupelho liderado por Mário Machado, neonazi com várias condenações por crimes de ódio, discriminação racial, ofensa à integridade física qualificada, difamação, ameaça e coação a uma Procuradora da República e posse de arma de fogo, incluíndo 4 anos e 3 meses de prisão por ser um dos implicados na “caça ao negro” na noite de 10 de Junho de 1995, que resultou em 10 feridos e na morte do jovem cabo-verdiano Alcindo Monteiro. O DN cita mensagens do chat deste grupo no Telegram onde os seus membros se regozijam e celebram estas agressões. O próprio Mário Machado aparece a negar o envolvimento, mas a considerar que “o sistema irá ser implacável para quem tenha cometido aquele tipo de crime”, pelo que “eles serão as primeiras vítimas a lamentar”. No passado dia 7, Mário Machado foi condenado a 2 anos e 10 meses de prisão efectiva por incitamento ao ódio e à violação de mulheres de esquerda.
Recordo que Mário Machado apelou à infiltração de neonazis no Chega e de facto três chegaram a lugares de topo, mas face às denúncias públicas acabaram afastados. No entanto, o Relatório do Projecto Global contra o Ódio e o Extremismo (GPAHE, na sigla em inglês) apurou que membros da juventude do Chega têm ligações ou partilham publicações de Mário Machado. André Ventura teve o cuidado de se demarcar destes crimes contra imigrantes, mas justifica-os com um alegado clima de insegurança vivido no Porto, com roubos supostamente cometidos por magrebinos. O JN entrevistou vizinhos dos agredidos que não se queixam deles por nenhum roubo, apenas por algum barulho e estacionamento abusivo. Também a PSP diz que não recebeu nenhuma queixa contra os agredidos. Estes têm o registo criminal limpo, ao contrário dos agressores que têm todos antecedentes criminais de furtos e roubos violentos (até roubaram os imigrantes!). Segundo o “Expresso”, as autoridades portuguesas estão informadas de que estes grupos neonazis têm contactos permanentes com organizações estrangeiras classificadas como “terroristas”.
O crescimento do Chega, um partido nitidamente racista e xenófobo que no centro da sua propaganda coloca a etnia cigana e os imigrantes como bodes expiatórios dos problemas sociais, é indissociável do atrevimento cada vez mais descarado dos neonazis em crimes de ódio e organização de manifestações como a que fizeram em Lisboa “Contra a Islamização de Portugal”, apesar de fora do local proibido pela Câmara Municipal e, no Porto, sob o lema “Mais Habitação, Menos Imigração!” Ou como a que juntou vinte e poucas pessoas convocadas por outro grupelho neofascista, no passado Sábado, de novo no Porto, contra imigrantes e o Presidente da República.
Já em 2005, cerca de 400 neonazis juntaram-se, no Martim Moniz, a exigir a expulsão de imigrantes, a pretexto do que ficou conhecido como o “arrastão de Carcavelos”, um pretenso roubo colectivo que acabou por se revelar uma notícia falsa amplificada pelos “media”, que ficou como um mau exemplo de jornalismo em cursos e estudos académicos.
Estes grupos neonazis perderam influência, mas ressurgem agora à boleia do crescimento da extrema-direita “normalizada” pelo voto (Hitler também foi eleito pelos alemães!) de mais de um milhão de eleitores seduzidos pelo populismo que apela aos mais primitivos preconceitos raciais e xenófobos, num Portugal que ainda não descolonizou as mentes (a “afasia colonial” de que fala o historiador Miguel Cardina) e tem dificuldade em discutir, como já foi feito noutros países, as reparações históricas por séculos de escravatura, trabalho forçado, massacres de indígenas (antes e durante a guerra nas ex-colónias) e não superou ainda o racismo estrutural herdado do salazarismo que nos impingiu os mitos dos “brandos costumes” e da miscigenação do luso-tropicalismo. Em 2018, o Comité Anti-Tortura do Conselho da Europa colocou Portugal entre os países europeus com mais casos de violência policial, sobretudo contra afrodescendentes.
O discurso de Passos Coelho na campanha eleitoral (replicado um dia depois por Montenegro), reconhecendo a necessidade de “ter o país aberto à imigração” (em sintonia com a exigência de todas as confederações patronais), mas alertando para a ligação da imigração com a insegurança, ignora todos os estudos oficiais que negam qualquer relação entre o aumento da imigração e a (in)segurança. Também Rui Moreira e a Procuradora Lucília Gago teceram comentários no sentido de desviar o problema dos crimes de ódio racista para uma discussão sobre imigração. Dados do Ministério da Justiça mostram uma diminuição de crimes associados a estrangeiros e uma descida de 7,8% da criminalidade violenta e grave. Portugal é o 7º país mais seguro do Mundo e um dos países europeus com menos imigrantes (8% da população, segundo a Pordata, enquanto, por exemplo, o Luxemburgo tem 47,4%, a Estónia 17%), mas qualquer relação entre estes dados é refutada em países como a Áustria que apesar de ter 19% de imigrantes é um dos países mais seguros da Europa). Passos & Cª alimentam a xenofobia. É sabido que a sustentabilidade da Segurança Social tem vindo a ser assegurada pelas contribuições dos imigrantes (1.600 milhões de euros de saldo em 2022), e que a imigração tem colmatado o envelhecimento demográfico do nosso país, mas não podemos ter nenhuma hesitação, face a uma Europa que já transformou o Mediterrâneo num “mar de extermínio”, em colocar o foco nos direitos humanos, mobilizando para a paz entre os povos e na defesa de uma cidadania global (“Ninguém é ilegal!”). Somos todos (i/e)migrantes!
A extrema-direita tem vindo a crescer eleitoralmente em Portugal e na Europa e arrasta na voragem populista reaccionária a direita e também partidos do centro e centro-esquerda que resvalam para posições retrógadas e desumanas, não só na cumplicidade da União Europeia com o genocídio de palestinianos ou na actual (re)fascização e militarização acelerada da Europa, mas também na reforma acordada em Abril sobre o Pacto Europeu para a Migração e Asilo, denunciadas por mais de 80 organizações de Direitos Humanos, como a Amnistia Internacional e a Oxfam, por abrir a porta ao racismo, detenções arbitrárias e deportações forçadas (já se praticam no Reino Unido e na França!); na Alemanha, os neonazis do AfD, o segundo partido nas sondagens para o Parlamento Europeu, já falam em deportações em massa de imigrantes, mesmo com cidadania alemã.
Em 2023, os crimes de ódio cresceram 38% em Portugal. A impunidade é norma. Ainda recentemente a SOS Racismo e a associação Letras Nómadas denunciaram publicamente a ausência de resposta, desde Outubro, às queixas que têm apresentado à Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminaçao Racial que não reúne desde Julho do ano passado. É urgente criminalizar o racismo e a xenofobia, no cumprimento da Constituição de Abril. Fascismo, xenofobia e racismo nunca mais!