A criatura

porAlice Brito

29 de outubro 2015 - 1:16
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Que não está cá para matemáticas. O governo é coisa séria. Não há cá esquerdices para ninguém. Um milhão de votos? Brinquem no parlamento. No governo só maiorias amigas. Era o que mais faltava.

Quando a criatura fala a mediocridade delira. A criatura é um homem cinzento. Da cor do cimento. Às vezes parece mansa. Sonsa. Lassa. De uma lentidão de azeite. Mas não é. A criatura, quando é chamada a decidir, esganiça-se, sobe o tom e a velocidade. Discursa. Mal, mas discursa. Só fel.

A criatura absolve e branqueia crimes cometidos pelos seus oficiais. Trava combates a descair para a peçonha.

A criatura é míope de alma. É um homem sem visão. Pior que isso, é um homem sem olhar. Há por ali uns orifícios que contêm olhos. Só isso. Nem expressão, nem qualquer evidência de que ali haja outra coisa que denote um mínimo de vida interior.

O que terá lido a criatura ao longo da vida? Com sorte o Pato Donald. Aposto que nunca leu o Asterix. Asterix? Demasiado ousado, eventualmente subversivo.

Por isso dá erros. Fala em “cidadões” porque realmente o que ele domina é a gramática dos interesses. Tem, aliás, razão para isso. Bem lucrou com ela!

A criatura gostaria de ter à sua frente uma esquerda letárgica, num ensimesmado torpor sonolento. Uma esquerda pianinha, conformada, coisa menor e recatada.

Saiu-lhe ao caminho uma esquerda lampeira e a criatura passou-se.

Quando há tempos soou o grito helénico a criatura avisou. Cuidado.

Os avisos são aliás a sua especialidade. Ele avisa que o sol vai nascer, que o inverno vai ser mais frio que o Verão, e que os mercados estão indispostos. A semana passada pediu-lhes que vomitassem.

No dia em que a criatura saltou do ecrã e entrou descaradamente em casa das pessoas disparou mais um discurso: Pensei em tudo. Nos cenários, na música, coreografia e actores e texto.

E tão honesto, tão dado à disciplina e ao rigor, tão vertical nos seus compromissos, roncou um grito de guerra convocando alguns deputados para o exercício da facada. Não votem com o vosso partido. Votem com o meu.

O discurso fez ricochete e o tipo lixou-se. Os destinatários da encomenda da traição fizeram-lhe um grandessíssimo manguito. Podou dúvidas e fez crescer certezas. O homem é, de facto, um traste.

Até os apaniguados do costume abanaram a cabecinha.

Entretanto, a lei constitucional contorce-se na aflição do incumprimento.

Cá fora, neste Outono inseguro, longe dos cenários e decisões e dislates, a passividade treinada ao longo de décadas sucessivas deu de si enquanto, por outro lado, se anuncia uma coisa parecida com um governo. Uma coisa volátil como éter, efémera como uma guinada de abcesso. Mesmo assim, notável na dimensão do descaramento. É a continuidade a que acresce o piorzinho da utensilagem laranja.

Ainda não tomou posse e já ali se pressente a penugem do bolor.

Vamos ver o que a criatura fará, quando cair sem história nem glória o pano sobre a farsa.

Vamos ver até onde nos levará o narcisismo cavaquista. Continuaremos a empobrecer em duodécimos? Continuaremos com esta tribo a governar-nos?

Esta gente não presta. É gente filha do séc. XXI e de mais qualquer coisa.

Alice Brito
Sobre o/a autor(a)

Alice Brito

Advogada, dirigente do Bloco de Esquerda. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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