Está aqui

Covid-19 e a Reforma da Previdência

Uma das marcas do governo de Bolsonaro é a Reforma da Previdência (segurança social). Recomendada pelo FMI e uma necessidade de longa data do país, a Reforma da Previdência esconde as assimetrias brasileiras.

A eleição de Bolsonaro foi a caixa de pandora de uma sociedade profundamente assimétrica. Enganchada na eleição de Donald Trump e a reboque das nostalgias dos regimes autoritários e nacionalistas, culturalmente unívocos e moralmente ultraconservadores, tornou-se num pretexto de combate ideológico radical, o qual assumiu, desde cedo, uma feição religiosa: a busca pelo Messias. Esse Messias seria de outra matéria diferente do reformista humanista que Cristo simboliza, apresentando-se na linha de David, sendo, assim, menos “redentor” e mais “guerreiro”. Ele viria para libertar o Brasil de um jugo, não externo, mas interno: o PT. A política brasileira tornou-se, então, território da batalha entre o “bem” e o “mal”. Esse “mal”, encarnado no PT, no vermelho do Demónio, na mão esquerda de Satanás empunhando a foice da “morte” (“o ceifeiro”), o comunismo como velha face da podridão infernal, repescado do bipolarismo da “guerra fria”.

O PT das reformas educacionais, do compromisso com a diversidade sexual e de género, étnica e religiosa, foi encapsulado na “corrupção”, esse mal que afeta e afetou todos os governos brasileiros, o qual nenhum foi capaz de expurgar, mas que por via de uma intensa campanha político-mediática, se tornou património exclusivo de Lula e do seu partido. De nada vale referir que, proporcionalmente, o PSDB tinha uma taxa de corrupção superior ao PT mesmo durante o governo deste. A memória instituída para efeitos de reforço de poder de um grupo de assalto às instituições brasileiras, ganhou. O PT não foi avaliado no computo das suas ações, entre malefícios e benefícios. Tornou-se a semente de todos os males da sociedade brasileira.

Vários fatores, com efeito, concorreram para essa ocorrência. Sem dúvida que os aspetos de natureza sociológica foram os mais determinantes. Os mandatos do PT foram marcados, na sua dimensão positiva, pelo implemento e incremento de políticas públicas que produziram um efeito de mudança nas estruturas sociais, possibilitando uma ténue, mas real, mobilidade social. Com efeito, foi evidente o aumento do número de negros e oriundos de famílias pobres nas universidades brasileiras. Trabalhadores a descoberto de proteções jurídicas e sociais foram objeto de garantias até então não implementadas. Numa frase crua e realista, que resume os efeitos de tais políticas: “pretos” e filhos das domésticas foram para as universidades, e as suas famílias puderam sentir o gosto de férias.

Foi nesta dimensão que surgiu a verdadeira “luta de classes” na sociedade brasileira, tendo em conta que negros, LGBTI+, pobres de um modo geral, constituíam-se como franjas sociais marginalizadas ab initio e ad eternum. Ora, ao tornarem-se visíveis, fizeram emergir novas dinâmicas de conflito. Uma vez empoderados, ameaçaram o status quo de uma sociedade altamente racista, racializada e estruturada, onde a mobilidade social era praticamente inexistente. Com propriedade costuma dizer-que o “anti-petismo” nasceu quando a família da doméstica se encontrou com a família da patroa no aeroporto e o filho daquela ficou com a vaga na USP (Universidade de São Paulo) do filho da patroa.

As ameaças às elites, aos seus eternos privilégios de classe, lançaram o rastilho do impeachment de Dilma e da eleição de Bolsonaro. A eleição deste resultou, em grande medida, de uma intensa campanha de notícias falsas (fake news), as quais, contudo, não esgotam as justificações para o ocorrido. Em rigor porque uma notícia falsa, em particular as lançadas contra Haddad, para resultarem precisam de um público disponível para as aceitar, e para que tal ocorra elas carecem de apelar aos preconceitos dos seus destinatários, não de possuir coincidência com a realidade. Este fenómeno ressoa não apenas nos privilégios de classe das elites, mas também nos setores que tinham verdadeiro interesse na eleição do “capitão”: os agropecuários, as empresas agrotóxicas, fabricantes e comerciantes de armas legais e os grupos evangélicos.

Reformas: uma metáfora para a destruição de direitos

O governo Bolsonaro tornou-se, então, uma encruzilhada de interesses particulares, marcados, sobretudo, pela agenda ultraliberal do Ministro Guedes, voltada para a privatização ao máximo dos recursos brasileiros, um alinhamento geopolítico exclusivamente pró-americano, imaginado por Olavo de Carvalho, o saudosismo da ditadura encarnado em Bolsonaro himself, e a ânsia de instauração de uma teocracia evangélica que Bolsonaro procura capitalizar, mas do qual não é o rosto absoluto, razão pela qual se relaciona de forma estreita com vários líderes evangélicos, entre eles Edir Macedo, fundador da IURD.

Além da inversão das políticas públicas voltadas para os grupos sociais marginalizados e para a promoção da mobilidade social, uma das marcas do governo de Bolsonaro é a Reforma da Previdência (segurança social). Recomendada pelo FMI e uma necessidade de longa data do país, diante do exponencial crescimento da população e do aumento da esperança média de vida, a Reforma da Previdência esconde as assimetrias brasileiras. Se é um facto de que o grosso populacional é de baixa renda, não é menos verdade que a esperança média de vida nas populações carentes é mais baixa do que nas populações mais favorecidas. Ora, a Reforma da Previdência introduziu a idade mínima para acesso à pensão, estabelecida nos 65 anos. Sabemos que a média de vida, no Brasil, das mulheres é de 76,7 anos e de homens é 69,1. Altos índices de violência, dificuldade de acesso a cuidados médicos e a medicamentos, produzem efeitos nas camadas mais pobres da população. Ainda assim, o aumento da esperança média de vida é quase 30 anos maior que em 1940.

Assim, verifica-se uma sobrecarga com encargos sociais, dos quais o atual governo subtraiu as políticas públicas de apoio aos mais carenciados, como a “bolsa família” que observou um recuo considerável no número de beneficiários.

A demografia brasileira é, portanto, um problema sério para os sucessivos governos. Distância, isolamento, características étnicas, sexuais, de género, económicas e de escolaridade, são fatores que dificultam a implementação de políticas públicas eficazes. A tudo isto acresce o posicionamento ideológico.

Como visto, com o governo de Jair Bolsonaro as políticas públicas mais significativas desapareceram, ao sabor de um viés ideológico conservador-evangélico que desconsidera a diversidade sexual, étnica, social e religiosa do país, preferindo a manutenção do status quo histórico à promoção da mobilidade social e reajuste da curva histórica de segregação.

O caso covid-19

Diante da pandemia do Covid-19, Jair Bolsonaro tem levado a cabo intensa campanha de desacreditação do vírus e combate às medidas de isolamento e distanciamento social. Vários Estados contrariaram as diretrizes do presidente e decretaram as devidas medidas públicas, em conformidade com a OMS. No entanto, Bolsonaro, seguindo e ampliando o pensamento negacionista inaugural de Donald Trump, tem promovido o caos social, seguido por milhares de adoradores, para quem o presidente assume a figura messiânica. Do lado evangélico a posição presidencial é confortável, tendo em conta que o encerramento das igrejas representa uma quebra de receita. Da perspetiva ultraliberal do mercado, esta é a medida mais acertada, tendo em conta que o mercado demanda pelo regular funcionamento social. Do ponto de vista da ideologia social, o confinamento é um privilégio das elites. Ora, é no cruzamento entre ideologia social das classes dominantes e o imperativo dos empresários que emerge uma doutrina obscura: a da mais-valia do Covid-19. Sabendo que a população pobre é quase infindável no Brasil, há uma garantia de renovação permanente da mão-de-obra. Ao mesmo tempo, na deriva da lógica do “bandido bom é bandido morto”, encontramos a de que “pobre bom é pobre morto”, haja visto que não se distingue, no imaginário das elites, entre pobreza e criminalidade. Ser pobre é ser, necessariamente, criminoso.

Num país com um índice populacional tão elevado, a morte de alguns milhares de pessoas não prejudica a causa maior, pelo contrário. De uma assentada o Covid-19 resolve o problema da Reforma da Previdência, haja visto que são os mais pobres e mais velhos os mais afetados pela pandemia, e cumpre um velho desígnio de Bolsonaro: matar o número de pessoas que a Ditadura militar não foi capaz de atingir. Como ele próprio afirmou, as mortes por Coronavirus não são um problema seu, afinal ele não é coveiro.

Sobre o/a autor(a)

Doutorado em Estudos Africanos pelo ISCTE-IUL. Mestre em História e Cultura das Religiões pela FLUL. Investigador Integrado do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE-IUL.
(...)