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Covid-19 e a “potencial vulnerabilidade” da região Norte

Há um país de operários e operárias fabris, de baixos salários, de precariedade, de habitações sem condições, de apoios sociais indigentes, que não consegue resguardar-se, que está a ir massivamente para o desemprego e que é o país que mais sofre com as crises.

Os dois primeiros casos confirmados de covid-19 em Portugal eram de residentes na região Norte e foram notificados a 2 de março. As autoridades sanitárias referem que estes casos estiveram associados a viagens de trabalho ao norte de Itália e ao sul de Espanha.

O número foi aumentando nos dias seguintes, até atingir os 642 casos no dia 17 de março, véspera da declaração do primeiro estado de emergência. A transmissão do vírus tinha deixado de ser importada, como parece ter sido inicialmente, e passou claramente a ser comunitária.

Nesse momento, apenas 15 dias depois de terem sido confirmados os 2 primeiros casos, 45% dos infetados encontravam-se na região Norte, onde reside pouco mais do que 30% da população portuguesa.

Um mês depois, a 17 de abril, havia 11.762 casos na região Norte que correspondiam já a quase 60% da totalidade das pessoas comprovadamente infetadas no país. Até aquele dia, 57% dos óbitos ocorridos por covid-19 foram na região Norte.

No relatório final do 3º estado de emergência está referido que, a 3 de maio, se mantinha a desproporcionada taxa de 57% de óbitos na região Norte.

A situação de especial gravidade a Norte era evidente. A título de exemplo, os operadores de gestão de resíduos hospitalares reportaram à Agência Portuguesa de Ambiente que estavam a ter particulares dificuldades na região Norte com o aumento da produção de resíduos hospitalares. Muitas outras situações começaram a surgir, como o caso dos lares de idosos em que a desproporção confirmava a tendência para uma situação agravada na região Norte.

O número de casos confirmados com a doença covid-19 por 10 mil habitantes foi acima do valor nacional em 51 municípios e, deste conjunto, cerca de 70% (36 municípios) pertenciam à região Norte. A média nacional foi de 26 casos/10 mil habitantes (valores de 4 de maio). É ilustrativo que este indicador tenha sido de 40,2 no Cávado, 32,0 no Ave e 50,0 na Área Metropolitana do Porto (na Área Metropolitana de Lisboa foi de 18,6).

A pergunta que devia ter sido colocada com urgência parece óbvia: por que razão a região Norte, com apenas 30% da população, tem as mais elevadas taxas de infetados e óbitos no país? Por que razão, tendo a região Norte apenas mais 25% de população do que a região de Lisboa e Vale do Tejo, tem quase o dobro de pessoas infetadas e a caminho do triplo de óbitos com covid-19? É certo que aconteceram em municípios do Centro e Sul situações idênticas, veja-se o conhecido caso de Ovar que levou ao estabelecimento da primeira cerca sanitária. Porém, em termos agregados, a região Norte é a que necessariamente teria de suscitar maior preocupação e, muito provavelmente, medidas diferenciadas de apoio.

Tudo isto carece de uma análise aprofundada que, até ao momento, as autoridades responsáveis não fizeram ou não revelaram. Tudo indica que a progressão da doença não é um fenómeno fortuito e se relaciona diretamente com as desigualdades. Não será estranha a esta situação de maior número de infetados e de óbitos por covid-19 o perfil económico de cada região e as características da indústria a Norte. Também as condições em que se trabalha e o facto de boa parte do pessoal dos serviços ter ido para teletrabalho enquanto o das indústrias ficou nas fábricas.

Henrique de Barros, presidente do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto, refere que “as pessoas com piores condições sociais têm de se expor mais. A exposição e a doença não são fenómenos aleatórios, dependendo da região, das condições sociais, da idade e do sexo”.

Os apoios sociais e as medidas sanitárias não terão sido suficientes para atenuar o efeito das diferenças sociais. De que forma é que foram concedidas condições sanitárias a quem continuou a trabalhar na indústria?  Houve alterações nas fábricas e oficinas, garantido o distanciamento físico e os necessários meios de proteção às operárias e aos operários? As casas de banho e os balneários têm as condições adequadas? E os locais de refeição? E as condições de habitabilidade das famílias? E a qualidade dos transportes? E os baixos rendimentos do trabalho? E a precariedade? E a falta de fiscalização da ACT?

O geógrafo João Ferrão, investigador do Instituto de Ciências Socias da Universidade de Lisboa, refere que “a região Norte é particularmente interessante, já que os resultados globalmente elevados apenas são compreensíveis se considerarmos que existem vários Nortes particularmente expostos e suscetíveis: a área metropolitana, com as suas franjas suburbanas mais pobres; as áreas de industrialização difusa, sobretudo do Vale do Ave; as cidades médias (Viana do Castelo, Braga, Guimarães, Vila Real, Bragança); os concelhos junto à Galiza, o troço da fronteira luso-espanhola com uma dinâmica transfronteiriça mais intensa; e Trás-os-Montes, com uma forte relação com comunidades emigrantes de vários países europeus (desde o regresso de portugueses despedidos recentemente ao vaivém de trabalhadores da construção civil). Dizer que a região Norte tem valores mais elevados porque “por acaso” alguém veio infetado de uma feira no Piemonte, a região italiana com maior incidência da covid-19, é não entender que estes vários Nortes conciliam, ainda que em graus diferenciados, uma forte exposição externa e uma suscetibilidade local elevada, ou seja, um significativo potencial de vulnerabilidade em relação a esta ou a qualquer outra doença infeciosa."

Esta é a realidade de um Norte marcado na sua diversidade pela industrialização, suburbanização, empobrecimento e emigração. Há um país de operários e operárias fabris, de baixos salários, de precariedade, de habitações sem condições, de apoios sociais indigentes, que não consegue resguardar-se, que está a ir massivamente para o desemprego e que é o país que mais sofre com as crises. A pandemia expôs as desigualdades sociais e territoriais, que o estado de emergência não enfrentou apesar de ter contribuído para a ilusória ideia de que “estamos todos no mesmo barco”. Agora, é preciso perceber se quem teria de o fazer, fez ou está a fazer alguma coisa perante esta “potencial vulnerabilidade” da região Norte e dos setores sociais mais desprotegidos, que a evolução dos números comprovava que não era apenas potencial. De facto, era e foi real, como são dramaticamente reais as desigualdades sociais e territoriais.

Sobre o/a autor(a)

Docente universitário IGOT/CEG; dirigente da associação ambientalista URTICA. Dirigente do Bloco de Esquerda
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