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A corte na lama

Dois anos depois, o PSD volta a abrir os braços a André Ventura (AV). É perturbador que a única coisa que parece aproximar Passos Coelho de Rui Rio seja esta tendência conjunta para normalizar protofascistas num ápice.

Dois anos depois, o PSD volta a abrir os braços a André Ventura (AV). Não deixa de ser curioso que dois líderes sociais-democratas, consecutivamente, sejam os maiores responsáveis pela normalização irresponsável de um projecto político pessoal absolutamente demagógico, maniqueísta, mentiroso e populista, tantas vezes racista, odioso e xenófobo. É perturbador que a única coisa que parece aproximar Passos Coelho de Rui Rio seja esta tendência conjunta para normalizar protofascistas num ápice.

No momento em que AV procura branquear o assassinato de Bruno Candé, recorrendo a mais um rol de declarações inadmissíveis, insinuações abjectas e divulgação de posts falsos, Rui Rio apela a uma eventual-fofura-futura do Chega (CH). "Se o CH evoluir para uma posição mais moderada, eu penso que as coisas se podem entender", afirma Rio à RTP3. Ficamos a saber que é possível ver Rui Rio a conversar com um rebento do PSD de Passos, o delfim que o ex-líder do PSD abraçava na campanha autárquica de Loures em 2017, desvalorizando as declarações xenófobas e racistas que proferira contra a comunidade cigana e que levaram o CDS a retirar o apoio à candidatura, abandonando a coligação.

Ao admitir uma aliança com AV, Rui Rio comete o seu maior pecado político desde que assumiu a liderança do PSD, admitindo algo que só o marialva-CDS de Francisco Rodrigues dos Santos foi capaz de afirmar como possível. PSD e CDS, juntos na insensatez. Rui Rio encheu-se de lama. São agora mais eloquentes e translúcidos à "firmeza política" de Rui Rio, proferidos por AV há um par de meses. Projectando uma aproximação no caso do CH se conseguir moderar, Rio não deixou de ouvir a resposta certa de um porco na luta: o CH só aceitará conversar com um PSD que não seja a dama de honor do PS. Foi para esta corte na lama que o PSD de Rui Rio se deixou arrastar.

Se há coisa que Rui Rio devia ter aprendido com a sua liderança-minada no PSD é que só pode contar consigo. Ao contrário do que diz, uma eventual aliança não depende do CH, depende sempre do PSD. E quem se dispõe a passar um pano sobre o passado recente e sobre o presente evidente só pode estar a querer limpar a realidade com um pano encharcado nas mãos. Quando alguns continuam a criticar a Esquerda por tornar o CH visível através da denúncia permanente da sua ideologia de extrema-direita de pacotilha, o verdadeiro palco que é dado a AV continua a vir desta Direita que não entende que só uma cerca sanitária pode impedir, e já vai tarde, o crescimento de um populismo tão abjecto.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 31 de julho de 2020

Sobre o/a autor(a)

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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