1 - A derrota recente do Partido Trabalhista nas eleições para o parlamento de Westminster foi geralmente considerada como desastrosa. O recuo eleitoral foi de 8 pontos, de 40% para 32% mas, devido ao sistema eleitoral uninominal, os trabalhistas perderam muitos deputados, exatamente 42, baixando a representação para 203 lugares, o pior resultado desde 1935. Conservadores e liberais, sobretudo fora do Reino Unido, apressaram-se a considerar que essa perda traduzia a rejeição popular do radicalismo programático de Corbyn, falaram da repulsa do esquerdismo. Curiosamente, o programa era idêntico ao das eleições anteriores, há apenas dois anos, com um altíssimo resultado nas urnas.
O argumento do esquerdismo não colhe, precisamente, porque a questão que dominou todo o espaço público foi a do Brexit, mau grado as tentativas de Corbyn de pôr na agenda o Serviço Nacional de Saúde. A questão nacional inglesa predominou sobre as questões socioeconómicas, particularmente depois de três anos de penoso arrastamento do Brexit no parlamento britânico, com maiorias diferentes e heterogéneas a rejeitar sucessivamente os acordos de saída da União Europeia, obtidos pelo governo de Theresa May com os 27 estados-membros.
2 - Ninguém à esquerda duvida que os acordos de Brexit de May, ou o último de Boris Johnson, não servem para proteger os direitos do trabalho, os imigrantes, o catálogo dos direitos sociais, garantias quanto à coexistência dos republicanos na Irlanda do Norte. Contudo, convém não subestimar que o conteúdo do acordo, por pior que fosse, não podia invalidar uma decisão soberana do povo inglês, mesmo que a Escócia e a Irlanda do Norte tivessem rejeitado o Brexit.
Diga-se de passagem que o que escoceses e irlandeses rejeitam é a coroa inglesa e nesse aspeto devem ter meios para decidir a sua permanência no Reino Unido. As tentativas de subverter o resultado do referendo a partir do parlamento foram constantes. Valeu a pena? Valeu a pena cultivar a ambiguidade face ao Brexit em nome de um "melhor" acordo de saída? Valeu a pena sugerir indiretamente um novo referendo, mascarado de referendo ao acordo mas com opção de "remain" na UE? Porquê tanto desprezo pela questão nacional?
3 - Quem reduz a questão do Brexit a saudosismo da Britannia imperial fá-lo impensadamente. A burguesia britânica, em larga maioria, não queria sair do mercado livre europeu. Foram as classes populares que determinaram o Brexit, por uma pequena margem é certo, dividindo profundamente a cidadania popular. Quem reduz a questão do Brexit à xenofobia, operação de extrema-direita, manipulação dos media, engana-se. Está lá isso tudo mas é muito mais do que isso. A tentativa de Corbyn de aderir ao Brexit sem alienar os "remainers" reflete, nessa moderação ambígua, a perceção de que uma maioria social estava farta da política neoliberal da Alemanha e da França. De tal modo que o Partido Liberal Democrata, abertamente defensor de um novo referendo para regressar à UE, sofreu uma derrota estrondosa e nem sequer a sua líder conseguiu ser eleita deputada.
4 - Devemos acusar como criminoso o nacionalismo agressivo. Esse é o nacionalismo que impulsiona e instaura guerras contínuas. É o nacionalismo que impõe o domínio imperialista sobre terceiros estados, amarrados a uma dependência económica e militar. É o nacionalismo agressivo que manipula religiões e rivalidades étnicas. Sim, sublinhe-se, o próprio Reino Unido é ainda um bom exemplo disso. Podemos acusar o nacionalismo fascista de escalada de guerra, olhem para Israel, entre muitos casos. Mas ninguém pode desprezar o sentimento nacional pela simples razão de que é um agregador populacional com termos comuns de proximidade, muito para além de ser eventualmente um fator étnico. Aqueles que, literalmente, a soldo da União Europeia condenam as políticas identitárias ligadas às realidades nacionais, querem substituir identidades nacionais por uma "identidade" europeia. Aliás, de fora da UE, a partir de outros continentes, percebe-se bem melhor essa pretensa superação identitária para suportar a competição "europeia" no globo.
Os povos europeus, pese o crescimento da xenofobia, gostam da ideia de cooperação europeia mas reagem mal, cada vez mais, a regras de desigualdade crescentes entre estados e classes e a modelos impostos que subalternizam os parlamentos nacionais - não lhe chamem locais.
5 - Corbyn estaria noutra situação se tem aceite o acordo europeu que May lhe propôs para viabilizar o Brexit, exigindo garantias adicionais sobre a inexistência de uma barreira física entre as Irlandas, o que Boris Johnson acabou por arranjar. Percebe-se que se o tivesse feito isso ter-lhe-ia provocado o afastamento dos setores liberais do Labour, como acabou por acontecer na mesma! Esses setores virariam as costas a Corbyn de qualquer modo, o pretexto era mais ou menos indiferente. Provavelmente, Corbyn não teria ainda ganho nas primeiras eleições posteriores mas, com fortes hipóteses, derrotaria May mais adiante no pós Brexit, batendo uma primeira ministra tão frágil na opinião pública e reincidente nas políticas de austeridade. E poderia então ter avançado com o seu programa de esquerda, tão necessário ao Reino Unido e tão demarcatório em relação à cartilha do Eurogrupo. São probabilidades, é bem verdade. Mas não deixam de ter um alto grau de possibilidade.
A conciliação de duas vias antagónicas no campo tático, o "get together", em nome de uma estratégia futura, perde a tática e perde-se a estratégia por longo tempo. Será que em tempo de grave desastre o Labour vai continuar a carpir o mesmo dilema? Aqueles que querem combater a extrema-direita, se continuarem a ter o fantasma da UE de permeio vão sacrificar uma geração. Têm de se derrotar os Boris a partir dos interesses populares e não dos interesses da UE.
6 - Trump abençoou Boris Johnson depois de ter cortado com May quando viu as suas vacilações. Este enlace imperialista, procurado muito para além do Brexit, é uma má notícia, com claras repercussões no seio da NATO.
O setor "continental" da NATO vai querer armar-se até aos dentes para equilibrar o esmagador arsenal anglo-americano. Esse processo já foi lançado e é o símbolo da "identidade europeia", claramente em contradição com o investimento em qualquer plano verde ou melhoria de serviços públicos. Essa é a deriva da UE, sim porque para a União Europeia também há um pós Brexit. O pós Brexit é para os dois lados. Com esta deriva no comando, a que alguns setores social-democratas chamam aliança progressiva, só podemos esperar que se consolidem sentimentos nacionais anti-UE, infelizmente hegemonizados pela extrema-direita na maior parte dos casos. E o processo é muito difícil quando a esquerda quer fazer valer as suas teses, justas e avançadas, se esbarramos na palavra nação. Quem esbarra na palavra nação vai acabar por esbarrar também na palavra europa. A paz precisa dos povos e de governos nacionais, ancorados à esquerda, dispostos a projetos comuns e livres.
7 - A figura de Corbyn merece um respeito extraordinário por ter recuperado bandeiras da esquerda depois de Tony Blair ter enrolado o Partido Trabalhista no seu neoliberalismo apelidado de "terceira via". Mais do que ter proposto um importante programa de nacionalizações, e já não era pouco, foi o afrontamento à NATO que marcará o ponto de uma causa. Corbyn foi objeto de uma sórdida campanha de mentiras sobre as suas posições e sobre a sua vida, como agora é hábito das campanhas sujas reacionárias nos tablóides e nas redes sociais.
Last but not the least, a recuperação da esperança, que se lhe deve, em milhares e milhares de militantes de esquerda é sempre um fio preso ao futuro, e a prova científica de que não há lutos eternos, embora as mobilizações possam ser intermitentes.