A frase de Orwell “quem controla o passado, controla o futuro”, remete-nos para regimes totalitários, em especial a URSS de Estaline, em que o passado era constantemente revisto com alteração de documentos e fotografias, porém aquilo q que se assiste hoje em Portugal passa também pela tentativa de controlar o passado.
Em poucos dias as reações ao discurso de Lídia Jorge no 10 de junho e a agressão a um ator que encarnava o papel de Camões numa peça em cena em Lisboa, são isso mesmo, tentativas de controlar o passado, tornando-o num terreno de disputa política.
Diga-se que o próprio 10 de junho faz parte dessa forma de controlar o passado. Comemorado pela primeira vez em 1880 como data da morte de Camões, fazendo, convenientemente, coincidir essa data com a invasão espanhola (a coincidência é forçada), foi transformado por Salazar no “Dia da Raça”, com as muito deprimentes condecorações a viúvas de mortos na guerra colonial do fim do regime. Depois do 25 de abril, o novo regime, não querendo romper completamente com o passado colonial, encontrou-lhe uma nova designação, cheia de “encontro de culturas”. Passou a ser o “Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas”, como dizia então Eduardo Lourenço, “falta descolonizar as mentalidades”, É preciso notar também que a escolha de Camões como símbolo nacional não é um sinal da grande importância que Portugal dá à literatura, Camões aparece como símbolo da grande epopeia dos descobrimentos e a sua morte como um sintoma da decadência de Portugal. “Morro, mas morro com a pátria”, atribui-se-lhe como ter dito na hora da morte (adivinhem: Não foi bem assim).
O primeiro alvo da fúria da extrema-direita foi o discurso de Lídia Jorge, ao qual, se entendêssemos de forma literal poderíamos criticar alguns números ou ideias. É interessante que não se tratou de forma alguma de um discurso revolucionário, ou anticolonialista, nada foi dito que contrariasse os mitos do luso-tropicalismo na sua reconstrução pós 25 de abril. Lá está a fidelidade à pátria, o encontro de culturas, o sonho do Infante, a sagacidade empresarial, o mito de Sagres, porém há o grão de areia de, e está certo, Os Lusíadas adivinharem os tempos de crise e fazerem a crítica da “vã cobiça”. Mas não foi isto que enfureceu a extrema-direita, nunca seriam capazes de chegar a tal subtileza.
Foram estas palavras, aliás exatas, que despoletaram a fúria dos saudosos de um passado imaginado:
“É verdade que a deslocação coletiva que permitiu estabelecer a ligação por mar entre os vários continentes, e o encontro entre povos, obedeceu a uma estratégia de submissão e rapto cujo inventário é um dos temas dolorosos de discussão na atualidade. É preciso sempre sublinhar, para não se deturpar a realidade, que a escravatura é um processo de dominação cruel tão antigo quanto a Humanidade, o que sempre se verificou foi diversidade de procedimentos e diferentes graus de intensidade. E é indesmentível que os portugueses estiveram envolvidos num novo processo de escravização longo e doloroso. Lagos, precisamente, oferece às populações atuais, a par do lado mágico dos Descobrimentos, também a imagem do seu lado trágico. Fá-lo com o sentido justo da reposição da verdade, e do remorso, pelo facto de aqui se ter inaugurado o tráfico negreiro intercontinental em larga escala, com polos de abastecimento nas Costas de África, e assim se ter oferecido um novo modelo de exploração de seres humanos que iria ser replicado e generalizado por outros países europeus até ao final do século XIX.”
Vem ao de cima o enorme trauma da escravatura, aquele assunto que não pode ser mencionado, aquele assunto de que os que estão sempre a dizer que a história não se altera, nem querem ouvir falar. Nada de novo, portanto.
Mais estranho, porque vai contra o mito colonial das últimas décadas do Estado Novo, foi ouvir apelos à pureza da raça, novamente com referência a uma referida e simbólica (num contexto luso-tropical) descendência de escravos e seus traficantes. Esta é uma nova narrativa da extrema-direita, a da “pureza da raça” que se repete quando alguns cidadãos portugueses (que não se chamavam nem Santos, nem Silva) faleceram num acidente de avião na Índia. Trata-se de uma narrativa comum da extrema-direita, em cruzada, mil anos depois, contra os infiéis muçulmanos ou negros (mesmo quando cristãos) que querem “substituir “a raça lusitana (como a dos cavalos).
A agressão a Adérito Lopes por um grupo Neonazi, faz parte do mesmo processo, O actor representava o papel de Camões numa peça que não caberia no conceito de história do pai Matoso (autor dos livros de história do Estado Novo), torna-se assim num alvo preferencial.
Podíamos acrescentar os insultos contra o representante da comunidade muçulmana na reunião de antigos combatentes. A sua presença desde há décadas era vista como uma homenagem aos combatentes africanos muçulmanos no exército colonial (que provaria a “nação plurirracial” de Salazar), mas agora é a extrema-direita que o pretende apagar. A narrativa luso-tropical funcionava por ter uma aparência de humanismo e bondade, sendo coerente, esta nova narrativa tem pouco a seu favor que não seja o medo atual de quem é diferente e o rancor dos descendentes dos “retornados”.
Voltemos ao pobre Camões, culpado involuntário de tudo isto. É simpática a ideia de que Portugal é um país mais voltado para a cultura do que para a guerra, ao colocar Camões como seu símbolo nacional. Não é o Camões poeta o “símbolo nacional”, é o Camões simbólico da epopeia nacional, das caravelas e da espada de D. Afonso Henriques. Repare-se em “A Portuguesa”, feita num espírito camoniano e no auge da febre de homenagem ao poeta, que é tão belicista e saudosista quanto se pode ser. Por pôr em causa esse atributo é que os neonazis agrediram Adérito Lopes, como o tinham feito, muitos anos antes, com João Grosso.
Salazar controlava o estado, a educação, a toponímia e a arte pública e assim conseguia controlar o passado. A rutura posterior ao 25 de abril nunca foi completa e os mitos de uma história nacionalista recompuseram-se com algumas nuances. A parte esquecida da citação de Orwell é que quem controla o passado é que controla o presente (e isto referia-se à falsificação estalinista da história). Já Renan tinha afirmado que a vantagem de ser um estado-nação era poder controlar a história. Em Portugal uma investigação séria colocou em causa mitos que o Estado Novo herdou e propagou, mas essa investigação tem passado pouco para o grande público, a quem se prefere vender uma história tradicional fantasista (Hermano Saraiva) ou teorias da conspiração boas para o ego nacionalista (Gomes Ferreira, Rodrigues dos Santos). Agora é a extrema-direita a querer impor uma nova narrativa, mais fantasista e implausível que as anteriores. Uma raça pura, sem mouros, africanos ou indianos, fechada com todas as suas raízes neste retângulo à beira-mar plantado. Não sabemos, mas era pedir demais, o papel de romanos, bárbaros, entre outros, no meio dessa raça.
Lembremos que a ideia de raça pura era cara aos nazis e o que fizeram para a conseguir, mas a distância entre o “vai para a tua terra” e câmara de gás é algo que não conhecemos e que tememos ser sobretudo uma questão de poder (o verbo e o substantivo). Do nazismo e do extermínio temos uma corrente negacionista tão forte que é criminalizada em alguns países. Por cá além do negacionismo temos uma utopia regressiva da ditadura que se exprime em slogans como “50 anos a destruir Portugal”, se esta expressão não provoca uma gargalhada generalizada é sinal de enorme desconhecimento dos 48 anos de ditadura e da situação de Portugal em 1974.
Para além da demagogia e gritaria, não creio que a extrema-direita tenha um grande interesse na história, as suas cabeças pensantes, no inevitável observador limitam-se ao negacionismo da escravatura ou a acrescentar a esse negacionismo o mea-culpa por não ser um português de raça, mas importa-lhes usar o passado para a sua agenda racista e de criação de um inimigo no “islâmico”. Nem percebem, ou não querem perceber, que nem toda a gente daquela parte do mundo professa a mesma religião.
O Estado Novo na falta de legitimidade democrática e de realizações próprias foi perito na manipulação da história, não criou muito de novo, antes aproveitou e aprofundou o que vinha da vaga nacionalista de finais de oitocentos. O regime democrático não foi capaz de romper com esta visão da história, evocando as caravelas a propósito e a despropósito, como fez Costa na Websummit, não há muito tempo. Expo 98, Centro Comercial Vasco da Gama, estátuas à missionação, até um Colombo na Cuba (do Alentejo), tudo perpetua a memória do império. Um remate, não será final, mas ridículo, são os brasões das antigas colónias (não dos novos países) na Praça do Império, em pé de igualdade com os distritos de Portugal.
Podemos esquecer a época colonial, os descobrimentos (mesmo aceitando a palavra)? Claro que não, mas ter deles uma visão mais alargada, menos nacionalista que compreendesse a visão do “outro”. É também da continuação desta visão neocolonialista que a extrema-direita se alimenta. Mas é claro que quer mais. Portugal nunca foi islâmico, não houve portugueses traficantes de escravos, somos todos uma raça, tal como os cavalos e os cães. Lembro-me de uma gravura com Salazar travestido de D. Afonso Henriques, é com isso que Ventura sonha, a espada e a armadura ficavam-lhe tão bem.
