Contas de dividir

porJosé Soeiro

06 de setembro 2023 - 0:18
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Apanhados de surpresa, é como se o gesto cooperativo nos lembrasse uma parte de nós, a que sabe desse paradoxo matemático que faz com que, em tantas circunstâncias, dividir seja multiplicar.

Temos grandes tristezas, mas também enormes alegrias com o desporto. E algumas lições. De dignidade, como a que revelaram as jogadoras da seleção espanhola de futebol ao reagirem com valentia e unidade ao machismo de Rubiales. E também de beleza.

Desta vez foram Nina Kennedy e Katie Moon, campeãs do salto com vara. A marca da primeira tinha sido atingida, batendo um recorde pessoal e nacional. A segunda, todavia, conseguiu também fazer os 4,90 metros. Kennedy e Moon alcançaram ambas o feito e ambas tentaram os 4,95 sem sucesso. Ao fim de algumas investidas, a australiana interpelou a norte-americana: “hey, girl, e se partilharmos isto?”. A medalha de ouro acabaria mesmo dividida pelas duas. Felizes, Katie e Nina celebraram no momento, a mais nova sem conseguir conter as lágrimas.

Não é a primeira vez que semelhante acontece. Há dois anos, em Tóquio, o italiano Gianmarco Tamberi, de 30 anos, saltou para o colo de Mutaz Barshim, o atleta de 29 anos do Catar. Tendo ambos a mesma marca no salto em altura, perguntou Barshim ao oficial dos jogos presente se não poderiam ter “dois ouros” na competição. “Se os dois concordarem”, terá ouvido como resposta. Mão esticada de Barshim para o seu colega italiano, passou-bem de Tamberi ao catari e, num segundo, ficou selado o compromisso, festejado efusiva e carinhosamente entre os dois. De novo, impossível evitar a comoção.

É bonito que a cooperação seja capaz de nos emocionar. Ela está sempre lá, implícita. Há um imenso trabalho de equipa para se chegar a um campeonato mundial ou a uns Jogos Olímpicos. Ninguém faz esse caminho sozinho. Mas é quando a partilha emerge inesperadamente, em momentos produzidos para a mais vigorosa competição, que ela nos toca. Ganharem as duas, Nina Kennedy e Katie Moon, foi uma festa tripla. De cada uma delas e nossa.

Apanhados de surpresa, é como se o gesto cooperativo nos lembrasse uma parte de nós, a que sabe desse paradoxo matemático que faz com que, em tantas circunstâncias, dividir seja multiplicar.

Artigo publicado em expresso.pt a 30 de agosto de 2023

José Soeiro
Sobre o/a autor(a)

José Soeiro

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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