Está aqui

As contas certas

O balanço da geringonça faz-se tanto dos avanços como das dificuldades em acabar com a gestão privada na saúde, em combater a precariedade no código laboral, em investir nos serviços públicos.

Uma das tentações dos últimos quatro anos foi a de fazer balanços antecipados da legislatura. Parece que foi no século passado que Cavaco Silva deu posse a um Governo PSD/CDS sentenciado no país e condenado no Parlamento. Foi ele o primeiro a querer destinar ao desastre a geringonça, quando os acordos ainda nem sequer existiam. Cavaco fez tudo para cumprir a sua profecia e impedir o novo Governo de tomar posse. Foi o primeiro a falhar.

A direita nunca acreditou na possibilidade de um entendimento entre o PS e a esquerda. Como era incapaz de ver o estado do país, minimizou a reivindicação popular e a disponibilidade da esquerda para encontrar uma alternativa. Quando veio gritar que era ilegal, inconstitucional e apelar às sanções da Comissão Europeia, já era tarde. O PS já governava em minoria com o apoio parlamentar de Bloco de Esquerda, PCP e PEV. Vieram então as ameaças e apelos ao diabo. Falharam.

A maioria dos comentadores também não cederam à tentação. Sobretudo nos momento em que as relações ficaram mais difíceis, apostaram várias vezes num rompimento que nunca chegou. E nem o PS escapou à sedução dos balanços antecipados. A partir do seu congresso quis entrar em pré-campanha para a maioria absoluta e tentou dar a legislatura por concluída no final da negociação do último Orçamento do Estado. Inventou uma crise a propósito dos professores para precipitar um balanço artificial e também falhou.

Porque é que toda a gente quer disputar o balanço da geringonça? Porque da apreciação do povo sobre os últimos quatro anos nascerá o próximo ciclo político. O tempo certo para o fazer começou no debate do Estado da Nação e só termina no dia 6 de outubro. Deixo quatro notas sobre esse balanço.

A primeira é o estado da direita. Acantonada num discurso de casos, é incapaz de fazer um balanço da legislatura para não ter de a comparar com o que teria sido o seu Governo. E é incapaz de apresentar uma alternativa porque não se pode chamar o diabo sem defender o inferno. Cortar era o único verbo que PSD e CDS sabiam conjugar. Como já mais ninguém acredita nele, ficaram sem estratégia.

A segunda é o paradoxo do PS. Utilizar as vitórias da geringonça para pedir força eleitoral para governar com maioria absoluta não faz sentido. A diminuição das propinas, os manuais escolares gratuitos, a diminuição do número de alunos por turma, o aumento do salário mínimo, a reversão dos cortes salariais e descongelamento de carreiras, o PREVPAP, a tarifa social da energia, o novo regime das reformas antecipadas, a vinculação de professores, a descida do IRS… fazem parte do balanço do PS mas só existiram porque partiram da imposição dos parceiros de que o PS se quer libertar.

A terceira é sobre o teste do algodão. Passados quatro anos de reversão de cortes e recuperação de rendimentos, já todos perceberam que o maior défice do país é o investimento público. O PS reconhece que há um problema nos serviços públicos, mas não tem resposta para o problema. Pelo contrário, regressa à velha ideia pré-geringonça de que é contraindo os direitos que o país avança. Escolhe as imposições do Tratado Orçamental, abandona as promessas de mudança europeia e prefere a presidência do Eurogrupo.

A quarta é sobre possibilidades, e todas estão em aberto. Apesar do “desassossego da vontade” do PS de uma maioria absoluta, uma das vantagens da geringonça foi acabar com os balanços premeditados e com a chantagem do “nós ou o diabo”. O PS quer libertar-se da geringonça para voltar ao business as usual e nós queremos mais força para ir mais longe contra a austeridade.

O balanço da geringonça faz-se tanto dos avanços como das dificuldades em acabar com a gestão privada na saúde, em combater a precariedade no código laboral, em investir nos serviços públicos para responder à saúde, à educação, a quem ainda é pobre. O país tem folga orçamental, precisa de ir mais longe e pode fazê-lo. Ontem, António Costa insinuou que isso seria uma asneira mas, nesse caso, a asneira maior teria sido a legislatura que agora acaba. Acho que ninguém se arrepende dela.

Artigo publicado no jornal “I” em 11 de julho de 2019

Sobre o/a autor(a)

Deputada e dirigente do Bloco de Esquerda, licenciada em relações internacionais.
(...)