Num momento em que o país procura arrumar a casa e alinhar com o Mundo em semelhantes pantanas, o cardeal alerta-nos para não arrumarmos a sociedade em faixas etárias. "A vida é um valor sem variações", assegura, ao arrepio do (ainda) ministro das Finanças. No dia anterior, Centeno havia colocado o país a escrever o seu nome próprio com S.
A construção de portas giratórias após o abandono de cargos políticos é uma especialidade maligna, parente da benigna construção de pontes
Agora sem Centeno, desde sempre aclamado pelo rigor e competência, Portugal terá de ganhar a batalha na Europa como a selecção ganhou o Euro"16: sem o Ronaldo em campo, saído fora de tempo enquanto o jogo decorria. Estranho é que, ao contrário do capitão que não se cansou de estimular e verberar do banco até ao apito final, Mário Centeno não ocupe o seu lugar como deputado até ao final da legislatura. Sabe-se que Centeno não é um animal político e a tribuna parlamentar pode bem não ser o seu habitat natural. Mas as contas certas não se propalam só nas Finanças. As contas certas na política exigem mais respeito pelas regras e pelas expectativas que decorrem de uma eleição popular.
Não se pode dizer que Centeno tenha escolhido o melhor tempo para a saída. A maturação da economia e das contas públicas mereciam um pouco mais de ponderação, num abandono que aparece a meio caminho de uma crise e ainda antes da discussão do Orçamento Suplementar. Se o processo de sucessão no Eurogrupo decorre sem grande dificuldade, tendo em conta o "cinzentismo europeu" de Centeno e a evidência de que é mais fácil encher um grupo quando ele é quase vazio de relevância, já nas contas portuguesas se exige uma entrada com garras. A escolha de João Leão, braço-direito de Centeno desde 2015, aprofunda - neste Governo - os valores de "fraternidade" e "compaixão" que Tolentino Mendonça nos entregou em palavras. Como António Costa não arrisca desformatar as células do Excel, nada melhor do que promover alguém que conhece os cantos às contas.
A construção de portas giratórias após o abandono de cargos políticos é uma especialidade maligna, parente da benigna construção de pontes. Sem questionar a competência, a possibilidade de um Banco de Portugal à espera do regresso de Centeno será mais uma controversa forma de interpretar a política e as suas metamorfoses. Se, há semanas, após a recente "novela Novo Banco" com presidente e primeiro-ministro, Centeno quis sair pelo seu pé, a (re)entrada no Banco de Portugal seria agora caminhar pela sua mão e por um pé fora de Costa.
Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 12 de junho de 2020