“Condenável, mas”... Ventura e Rui Moreira do lado da insegurança

porJosé Soeiro

11 de maio 2024 - 13:38
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Insegurança é isto: viver numa cidade em que um gang encapuzado invade a propriedade, destrói uma casa e espanca moradores (sim, também são moradores, não são?) que estão a dormir. Não há nada que justifique este crime. A sua condenação não deve vir acompanhada de nenhum “mas”.

1. O debate sobre o crescimento da extrema-direita e sobre ataques racistas é sobre isto: milícias criminosas e racismo. O que aconteceu no Porto no final da semana passada foi um crime. O primeiro suspeito detido pela polícia confessou às autoridades a motivação racista desse crime e acrescentou que terá estado envolvido em mais situações do mesmo tipo contra cidadãos magrebinos nas últimas semanas. Sabemos portanto que pelo menos um dos criminosos tem ligações ao grupo neonazi de Mário Machado, em cujas redes sociais se celebrou as agressões. Insegurança é isto: viver numa cidade em que um gang encapuçado invade a propriedade privada, destrói uma casa e espanca moradores que estão a dormir. Foi isto que aconteceu no Bonfim na última sexta-feira.

2. Não há nada que justifique este crime. A sua condenação não deve, por isso, vir acompanhada de nenhum “mas”. Numa sociedade democrática e que preze a segurança, quem atua desta forma, agredindo pessoas, ainda por cima com motivações de ódio, tem de ser severamente punido. Quem invoca o contexto de uma “vaga de crimes no Campo 24 de agosto” como justificação, o que está a querer sugerir exatamente? Que a existência de assaltos justifica outros crimes, designadamente ataques terroristas de milícias fascistas? Já agora, por que razão, em tantas notícias, não se fala das vítimas como moradores, que é o que também são, como se apenas outros fossem “moradores” e aqueles não?

3. Como já foi escrito por várias pessoas, o ataque no Porto tem responsáveis criminais, que já começaram a ser identificados, e responsáveis políticos. Quem são? São aqueles que no espaço público associam imigração e criminalidade, o que é objetivamente falso e visa cavalgar um sentimento subjetivo, canalizando-o para uma desconfiança sobre os imigrantes, como fez Passos Coelho. É quem incentiva o preconceito contra os imigrantes e o leva para a esfera institucional, como André Ventura, cuja reação à atuação da milícia foi desculpar o crime, procurando “enquadrá-lo” com uma suposta “indignação popular”. Ora, o que motivou o crime não foi a “indignação popular” nem a “insegurança da população”, porque a população que tem problemas chama a polícia e bate à porta das autoridades, não convoca neonazis. A motivação do crime foi o racismo e a ideia de que se pode espancar imigrantes e obter aplausos. Ventura quis integrar estes criminosos na sua órbita política.

4. Rui Moreira também esteve muito mal. Criticou o ataque e opôs-se a qualquer ato racista e xenófobo, o que é evidentemente de louvar. Mas depois não resistiu a desviar a discussão para o debate em torno da suposta “imigração descontrolada” e, mais grave, sugeriu a extinção da Agência para a Integração, Migrações e Asilo. É preciso lembrar que esta agência substituiu o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras na sequência do debate provocado pelo homicídio de um imigrante às mãos dos inspetores do SEF, serviço que deixou como legado 400 mil pendências e dezenas de milhares de imigrantes desesperados por não terem atendimento, nem possibilidade de obter as suas autorizações de residência (muitos dos quais há meses a descontar para a Segurança Social)? Regressar ao SEF que tínhamos seria um desastre absoluto.

5. Rui Moreira tem também responsabilidades na legitimação da extrema-direita, por ter permitido uma manifestação neonazi no Porto, no passado mês de abril, que deveria ter sido proibida, em nome da Constituição. E é responsável pela inação no outro tema que quis debater: apesar de ter sido proposto na autarquia, a Câmara não adotou nenhum Plano de Integração das pessoas migrantes que residem na cidade, não tem ajudado a resolver o problema da habitação que afeta trabalhadores portugueses e estrangeiros e adiou a criação de um Conselho Municipal para a Migração, que foi aprovado em 2021 e ainda não existe.

6. É preciso contrariar até à exaustão uma mentira e uma ideia falsa: não há nenhuma relação entre criminalidade e imigração. Entre 2017 e 2022, dizem os Relatórios Anuais de Segurança Interna, a criminalidade geral e a criminalidade violenta baixaram. Nesse mesmo período, o número de estrangeiros residentes em Portugal quase duplicou, de cerca de 400 mil para 780 mil pessoas. Se há problemas de criminalidade eles têm de ser resolvidos. Com políticas económicas e sociais para atacar as suas causas. Com intervenção das forças de segurança, para lidar com as suas ocorrências. Não é a imigração que os causa: há muito mais portugueses a cometer crimes do que estrangeiros. Os problemas de insegurança no Porto não explicam, não justificam e muito menos legitimam a criminalidade neofascista. Esta é, pelo contrário, um fator de agravamento da insegurança pública.

7. Há uma franja no nosso país que hoje se sente legitimada para exercer a sua violência verbal e física, porque encontra respaldo em discursos públicos e institucionais. Essa violência combate-se com todo o vigor: com ação política, com educação, com a polícia quando for o caso. Quando se fala em reparação histórica, eis porventura a mais urgente: garantir a todos os que aqui vivem as condições de se sentirem seguros, combater a herança da visão colonial do mundo, construir justiça social contra o racismo e a desigualdade que dá a imigrantes e afrodescendentes menos oportunidades, que os empurra para vias curriculares desvalorizadas, que os remete para territórios periféricos e empregos sem reconhecimento nem valorização, que lhes nega direitos humanos elementares. Combatam-se ainda as narrativas e as sugestões xenófobas no discurso mediático, na abordagem noticiosa, nos debates promovidos e na linguagem política. É que há palavras e associações que são gatilhos para a violência.

Artigo publicado em expresso.pt a 8 de maio de 2024

José Soeiro
Sobre o/a autor(a)

José Soeiro

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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