Não há nada melhor para desconstruir mitos e falácias como a utopia liberal do que pequenas histórias. Concretas e da vida real. Aqui fica uma delas. Tenho um tio - chamemos-lhe Orlando por razões de privacidade – que emigrou para os EUA há mais de 40 anos em busca de uma vida melhor.
Nada mais legítimo, o país atravessava uma grave crise financeira fruto do choque petrolífero de 1979, estava sob a alçada do FMI, faltavam produtos nas prateleiras dos supermercados e a instabilidade política era uma constante.
O “El Dorado” liberal tinha um discurso apelativo – a terra das oportunidades, onde tudo é possível – e o tio Orlando foi tentar a sua sorte em “terras do Tio Sam”. Trabalhou 12, 14, 16 horas por dia, por vezes mais, incluindo feriados e fins-de-semana. Férias, apenas 15 dias de 2 em 2 anos.
Investiu, comprou um táxi, a casa com jardim rodeada por uma cerca branca, como reza o sonho americano. Aprendeu a fazer “apple pie” e a celebrar o Dia de Ação de Graças. E, como qualquer norte-americano, teve de fazer um seguro de saúde, pelo qual pagou, durante mais de quatro décadas, mais de 800 dólares por mês. Leu bem, por mês.
Há algum tempo atrás, o tio Orlando teve um problema de saúde que o obrigava a colocar uma prótese numa perna, essencial para conduzir, que era o seu ganha-pão. O preço da prótese num hospital dos EUA é perto do absurdo, mas o tio Orlando estava descansado. Afinal, há décadas que pagava, sem nunca falhar, todos os meses, o seu seguro de saúde.
Só que estava enganado. Contatado pelo tio Orlando, a seguradora respondeu que não podia financiar a prótese daquele seu “cliente” porque o investimento necessário para a pagar não compensava a esperança de vida que o meu tio alegadamente ainda teria, de acordo com as “contas” da companhia de seguros.
A sorte do revoltado tio Orlando foi que tinha dupla nacionalidade e pode deslocar-se a Portugal para colocar a prótese, sem quaisquer custos, num hospital de Lisboa, pelo Serviço Nacional de Saúde.
Cada um por si?
É assim a vida no paraíso liberal norte-americano: cada um por si e mesmo assim pode não valer de nada. Porque o lucro está sempre à frente da vida das pessoas e o investimento nem sempre justifica o “nível de serviço”. Afinal, “money talks”.
A escolha hoje, numa altura em que as teorias liberais têm cativado muitos portugueses, sobretudo os mais novos, é entre um modelo deste género, em que tudo está bem desde que nada corra mal. Ou um modelo de estado social forte, com um SNS reforçado, um sistema educativo justo e equitativo e uma segurança social robusta.
Poderão dizer os mais céticos que se trata apenas de um exemplo isolado. A verdade é que uma empresa privada visa, acima de tudo, o lucro e a distribuição de dividendos pelos seus acionistas. E todas as decisões são tomadas tendo em conta esse “leitmotiv”.
Desde já devo avisar que já tive duas empresas e nada tenho contra a iniciativa privada. Só que nem tudo deve estar sujeito aos caprichos dos acionistas e ao serviço do lucro. Um país é tanto mais rico quanto mais forte for o seu estado social e mais protegidos estiverem os seus cidadãos.
Não é por acaso que Barack Obama tanto insistiu no famoso Obamacare, destruído pelos devaneios do inefável Donald Trump. É por aqui que se desconstrói a utopia liberal de que o “mercado” deve ser omnipotente, auto-regulado, e livre de impostos. E tudo a “Ele” deve pertencer.
Porque são estes impostos que nos salvaguardam, que nos permitem ter hospitais públicos de qualidade e acessíveis a todos, escolas públicas com um papel social indispensável, e uma segurança social que garanta que não tem de ser cada um por si.
O desafio hoje é explicar a uma juventude desiludida que o caminho não é o do “salve-se quem puder”. Dá trabalho e leva tempo, mas são pequenas histórias como a do tio Orlando que podem ajudar a desconstruir o discurso fácil, leviano e enganador da teoria liberal.