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Como é que o meu e o seu voto mexem com a minha e a sua vida?

O meu voto pode ajudar a melhorar (ou prejudicar, se me enganar na cruz) a minha vida e a do(a) leitor(a), assim como o seu voto também pode contribuir nesse sentido, ou, pelo contrário, pode ajudar a prejudicar a sua e a minha vida.

Ou seja, votar é um ato muito sério, logo, o voto não deve ser decidido por moeda ao ar; não é um mero jogo em que se aposta na equipa com a cor que mais nos agrada ou com os candidatos mais sorridentes ou no cavalo que vai à frente nas apostas (sondagens), mas exige algum esforço de análise para não nos virmos a arrepender, depois de termos prejudicado a nossa vida e a dos outros. E a abstenção, na maior parte dos casos, não passa de uma fuga de quem se sujeita de forma ignara a que os outros decidam da sua vida.

Pensemos juntos: esta solução de governo apoiado por partidos do centro-esquerda (PS) e da esquerda (Bloco de Esquerda, PCP e PEV) melhorou ou não a vida dos portugueses? Aumentos dos salários, das pensões e dos apoios sociais, redução de impostos, como o IRS, redução das propinas no ensino superior, redução do desemprego, aumento do consumo, são inegáveis conquistas, entre outras, da “geringonça”.

Sim, é verdade que ainda falta muito para se ter um país mais decente. Um país com um Serviço Nacional de Saúde sem listas de espera como as que temos, com médicos e enfermeiros suficientes em todas as especialidades, sem obscenas promiscuidades entre o público e o privado; com serviços públicos de qualidade, no litoral como no interior; com uma escola pública mais inclusiva e mais apelativa; com um ensino superior mais democratizado; com uma ciência e uma cultura mais participadas e partilhadas; com mais emprego com direitos; com mais redistribuição da riqueza e menos corrupção; com mais habitação social e a preços controlados; com mais ligações ferroviárias entre as regiões e com o resto da Europa.

Mas a maioria que suportou este governo provou que havia uma alternativa à austeridade, ao brutal aumento de impostos de Passos & Portas e à emigração massiva de jovens por falta de empregos. Nem sempre foi fácil negociar com o PS. Houve alturas em que os partidos de esquerda tiveram que ser inflexíveis, como aconteceu com a TSU, obrigando o governo a recuar, com a apoio da mobilização popular, e outras em que não conseguiram impedir algumas medidas gravosas para o país, por não estarem previstas nos acordos feitos com o governo. Foi assim que o PS entregou ao Santander o Banif e 2 mil milhões de euros do Estado, com a abstenção da PSD, apesar do voto contra dos partidos de esquerda.

Percebe-se, assim, que um vice-presidente da bancada parlamentar do PS tenha dito que o PS precisava de ter uma votação que lhe permitisse “governar sem empecilhos”. Se o PS não precisasse do apoio parlamentar dos partidos de esquerda, certamente que não teria empecilhos para governar à direita, como já havia feito o governo de Sócrates. Já o presidente do PS, Carlos César, em Viseu, aquando das jornadas parlamentares de junho deste ano, se atirou raivosamente contra o Bloco de Esquerda, obrigando António Costa, pouco depois, a deitar água na fervura, defendendo os sucessos da “geringonça”. Mais recentemente, porém, o próprio Costa resolveu zurzir no Bloco de Esquerda (enquanto tratava o PCP de modo paternalista, deixando Jerónimo visivelmente incomodado) e afirmou que se o Bloco de Esquerda tivesse a força do Podemos, teríamos em Portugal a mesma instabilidade que em Espanha. O que Costa não diz é que a instabilidade política em Espanha se deve em exclusivo ao primeiro-ministro Sanchez, do PSOE, que não teve a coragem para fazer um governo com os partidos de esquerda, apesar das cedências, algumas exageradas, de Pablo Iglésias; nem tão pouco para acabar com a “Lei Mordaça” criada por Rajoy (PP) em 2015, que censura, acusa e já obrigou vários artistas a fugirem para o exílio, e compactua com a existência de presos políticos, apesar de a ONU, num relatório de maio deste ano, ter considerado as detenções de políticos e cidadãos catalães como “arbitrárias”, já que estes não promoveram actos violentos ou incitaram à violência, e um atentado à liberdade de expressão, reunião e participação política, apelando ao governo de Sanchez para que fossem libertados de imediato e indemnizados.

Cartoon do Carlos Vieira

cartoon de Carlos Vieira

Aquilo a que alguns chamam, sem originalidade, de “políticas identitárias” do Bloco de Esquerda - o feminismo, o movimento LGBTI, o anti-racismo, o ambientalismo – como se fossem causas de tribos isoladas, são as várias faces da mesma luta pelos direitos humanos, pela liberdade, pela igualdade, pela paz e fraternidade entre os povos, pelos direitos de quem trabalha e de quem não consegue arranjar trabalho e pela salvação do planeta, ou melhor, da humanidade, face ao estado de “emergência climática” que leva o Secretário Geral da ONU, Guterres, a clamar por ações imediatas em vez de conversa.

Concluindo: o nosso voto não mexe só com a nossa vida, pode ajudar também a derrotar a extrema-direita fascista que avança pelas fendas abertas pelos (neo)liberais nos EUA, e pela capitulação da social-democracia na Europa, cujo papel de emprestar um rosto humano ao capitalismo (mais ou menos selvagem) já não é mais necessário para os “donos do Mundo”. As bandeiras da social-democracia que os partidos da “Internacional Socialista” deixaram cair há muito, estão hoje nas mãos dos partidos da esquerda, radicais na defesa do direito à Saúde, à Educação, à Habitação, à Segurança Social, ao trabalho com direitos, à Cultura e à Ciência, à mobilidade sustentável; de um sistema económico-financeiro que não delapide a natureza, nem o Estado Social, e crie emprego; do controlo público da banca e dos setores económicos estratégicos do país.

Só uma “sociedade socialista”, prevista na Constituição da República Portuguesa, na esteira do 25 de Abril, pode abrir caminho para a construção de “um país mais livre,mais justo e mais fraterno”. Assim saibamos votar nesse sentido.

Sobre o/a autor(a)

Ativista associativo na defesa dos Direitos Humanos. Militante do Bloco de Esquerda. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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