Em 1978, Eduardo Lourenço anotava o abandono do “sentimento nacional” pela revolução, deixando-o cair nos braços da direita. Não só interesse nacional e interesse revolucionário não eram antagónicos, como o primeiro podia comunicar “a sua força afectiva e a sua exigência ainda não superada por outro tipo de comunidade de mais concreta e íntima participação”.1 Há 11 anos, Daniel Bensaid dava conta da recomposição do imperialismo na globalização e, apontando as numerosas e recentes afirmações de estados soberanos, denunciava que a conotação pejorativa de “soberanismo”, contaminada por nacionalismos e chauvinismos, tendia a branquear a legitimidade de aspirações democráticas a uma política de soberania capaz de resistir à competição dos tempos2. Ontem, um jovem disse-me em conversa que, olhando para a Europa, “só via uma alternativa aos estados-nação: o império europeu, com Merkel ao leme”, e que isso nem pensar.
As palavras deles, com o seu tempo próprio, vão dedicadas aos que se arrepiam com o “sentimento nacional”, têm comichão com a “soberania”, palavra antiga e gasta, e atingem a urticária quando a veem inimiga do “internacionalismo” (hoje porventura mais apertados pela coça de soberania e de internacionalismo dada pela Grécia).
Algumas evidências: nem os estados-nação e o demoliberalismo foram a enterrar, nem a relação entre trabalho e capital deixou de se fazer no plano nacional, mesmo se a decisão sobre ela está cada vez mais fora. E têm razão os desconfiados, a soberania é tão velha como os regimes e responde apenas à pergunta: onde está a fonte do poder? Simplificando, no rei, primeiro, na Nação, depois (liberalismo e voto censitário), no Povo mais tarde e com muita luta (democracia e voto universal). E a cada visita aos Tratados vê-se bem como ela se foi indo.
Este convite não visa desvalorizar legítimas desconfianças sobre palavras muito usadas ou contaminadas, antes continuar o debate sobre o banho-maria que vivemos, sobre a colonização do “sentimento nacional” pela direita, e sobre a decisão soberana do povo grego no domingo passado.
No banho-maria os movimentos sociais, a rua e a indignação foram arrefecendo, e à esquerda continuou a ser possível defender a desvinculação do Tratado Orçamental e fazer tabu do euro e da soberania monetária, sem se perceber que das duas uma: ou o fim da esquerda no governo da Grécia ou fim do euro na Grécia.
A direita ganhou a batalha do “sentimento nacional” e ganhou a anestesia. Condenados pelo “vivemos acima das nossas possibilidades”, e por isso merecedores de castigo. Reabilitados pelo “não somos a Grécia”, que fica tão longe e tem tantos preguiçosos, e por isso o castigo até pode aliviar, se formos “pobrezinhos mas honrados”. Encontrem-se outras palavras para outros sentimentos, da recuperação do que é nosso, a começar pela dignidade, a continuar pela possibilidade de um futuro, mas não se deixe à direita “o sentimento nacional”.
O que será feito da vontade soberana do povo grego é o que veremos daqui a pouco. A Grécia disse Não, respondeu ao medo, e há quem, olhando para a história daquele povo e para o caminho feito até aqui, achasse que era bem possível que assim fosse. E assim foi. Foi feita a geografia de classes, de género, etária do Sim e do Não. Mas o referendo convocará interrogações sobre tudo o que for vertido daquela na decisão final, onde nem os desconfiados encontrarão mandato para um outro resgate ou para o escavar da austeridade.
1 “Psicanálise mítica do destino português”, O Labirinto da Saudade, p. 65.
2Daniel Bensaïd, “Theses of resistance”, (December 2004).