Combustíveis a aumentar? É a liberalização do mercado a funcionar

porMoisés Ferreira

08 de março 2022 - 23:06
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Se não se fixarem preços e margens e se não se regular o mercado que nos atira para esta espiral de aumentos de preços, tudo o resto será inútil.

Os preços dos combustíveis registam um aumento histórico em Portugal nesta segunda-feira: mais 8 cêntimos por litro na gasolina, no caso do gasóleo são mais 14 cêntimos. Apesar do salto desta vez ser maior, a tendência de aumento já se regista há muito tempo.

Não se pode ignorar que esta situação está a ter e vai continuar a ter um impacto muito significativo na vida e nos orçamentos de quem cá vive. Não é só a despesa mensal com o depósito do automóvel que vai aumentar, são também os preços de produtos essenciais. O impacto é maior quando se sabe que a esmagadora maioria do país não tem alternativas viáveis em termos de transportes públicos.

Mas também não se pode ignorar que a solução para pôr fim a esta escalada passa necessariamente pela regulação e fixação de preços. Quem acha que isto se pode controlar apenas através da redução do ISP ou do ajuste do seu adicional está completamente enganado. Se nos ficarmos por aí o que acontecerá com toda a probabilidade é que a baixa de imposto não se traduzirá numa baixa de preço, mas sim no aumento das margens de lucro.

Não é preciso recuar muito no tempo para perceber que isto é mesmo assim. A 15 de outubro de 2015 reduziu-se o ISP em 2 cêntimos na gasolina e 1 cêntimo no gasóleo. E o que aconteceu a partir daí? Três dias depois – a 18 de outubro, portanto – era anunciado um novo aumento do preço de combustíveis: 2 cêntimos na gasolina e 1,5 cêntimos no gasóleo. Em apenas 3 dias a redução dos impostos foi totalmente absorvida. O condutor não sentiu nada na sua carteira, mas de uma coisa pode ter a certeza: os lucros das petrolíferas ficaram maiores.

De facto, segundo a Direção Geral de Energia e Geologia (DGEG), de 15 de outubro de 2021 a 6 de março de 2022 o preço médio da gasolina 95 simples passou de 1,725€ para 1,838€. E hoje aumentará mais 8 cêntimos. No caso do gasóleo simples, o salto foi de 1,529€ para 1,682€. E como já sabemos, hoje, 7 de março, deverá aumentar mais 14 cêntimos. E não, nada disto foi por causa do aumento de carga fiscal.

A escalada de preços tem essencialmente a ver com o mercado e a sua liberalização, com a especulação e os mercados de futuros. Ao contrário do que a claque liberal apregoava, a liberalização do mercado não trouxe descida de preços de combustíveis, mas sim cartelização e especulação. Os operadores ficaram em roda livre e o Estado sem instrumentos para os controlar. Esse é o problema.

Já repararam que em abril de 2020, Nova Iorque negociou o barril do petróleo a preços negativos e o barril de Brent negociava perto dos 20 dólares? Mas quando se enchia o depósito na bomba de gasolina mal se dava por isso. Novamente segundo os dados da DGEG: no final de março de 2020 o preço médio da gasolina simples era de 1,257€ e no final de abril era de… 1,234€. Qualquer coisa como menos 2 cêntimos! No gasóleo simples a situação foi um pouco mais pronunciada: de 1,229€ para 1,13€. Mas isto enquanto o preço do petróleo atingia mínimos históricos a nível mundial!

A Entidade Nacional para o Setor Energético (ENSE) é muito clara no estudo que divulgou em julho passado: as margens de comercialização de combustíveis bateram recordes históricos durante a pandemia. Na gasolina chegou a 36,8 cêntimos por litro e no gasóleo a 29,3 cêntimos por litro! Os preços ao consumidor não baixavam significativamente porque as margens de comercialização estavam a aumentar! O problema estava no descontrolo e liberalização do mercado.

Problema para os consumidores, entenda-se, porque para as petrolíferas não tem havido problema algum, pelo contrário. A maior petrolífera do mundo, a Armaco, teve um lucro de mais de 30 mil milhões de dólares só no terceiro trimestre de 2021; já a Exxon embolsou 23 mil milhões de dólares no ano passado, mais ou menos o mesmo que a Shell, que lucrou 19,3 mil milhões de dólares. Mais modestas, a BP ficou mais rica em 12,8 mil milhões de dólares e a ENI em mais 6 mil milhões de euros. A Galp, numa escala mais pequena, teve ganhos de quase 500 milhões de euros e um lucro antes de juros, impostos, depreciações e amortizações de mais de 2.300 milhões de euros.

Dir-se-á: mas agora é diferente, estalou a guerra na Europa. É verdade, mas a escalada de preços é muito anterior à invasão russa e não foi o próprio secretário-geral da Apetro (Associação Portuguesa de Empresas Petrolíferas) que disse há dois dias que não havia escassez de produtos, mas sim um “impacto psicológico”?

O mercado em roda livre só sabe apontar para um caminho: aumento dos preços e especulação para aumento dos lucros. Por isso é que devemos entender isto: se não se fixarem preços e margens e se não se regular o mercado que nos atira para esta espiral de aumentos de preços, tudo o resto será inútil. Pode-se reduzir o ISP, eliminar adicionais, o que quer que seja? Pode, mas tudo isso tem que vir com fixação de margens e de preços, senão qualquer mexida nos impostos acabará fatalmente no bolso de comercializados e petrolíferas.

Percebe-se o esforço que PSD, Iniciativa Liberal e Chega fazem para aumentar a vozearia contra o Estado. Eles sabem que o cerne do problema está naquilo que eles próprios representam: a liberalização de tudo e o mercado como lei. Como o problema está naquilo que propõem gritam para ver se desviam atenções. Já o PS reduz-se ao AUTOvoucher, uma medida que nada altera de estrutural e que permite que os preços continuem a galopar, que o mercado continue em roda livre e que as petrolíferas continuem a embolsar. Uma forma de limitar ligeiramente o impacto do mercado desregulado, mas que permite que ele continue a funcionar desreguladamente.

Tudo será, como disse, inútil, a menos que se encare o problema de frente: regular o mercado, controlar os preços e as margens, acabar com a roda livre do liberalismo que, seja na bomba de gasolina ou noutra coisa qualquer, nos sai sempre muito caro.

Moisés Ferreira
Sobre o/a autor(a)

Moisés Ferreira

Dirigente do Bloco de Esquerda. Psicólogo
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