O estender no tempo, sem fim à vista, da guerra na Ucrânia, torna cada vez mais evidentes as novas coordenadas do debate e da disputa política, internacionalmente e em cada país. A esquerda internacionalista tem de revistar os seus critérios, para se posicionar em cada um dos conflitos que tenderão a surgir. A começar, desde já, pela Ucrânia.
O pano de fundo torna-se mais evidente, como demonstram acontecimentos como as tensões sobre Tawain, a expansão dos BRIC e os golpes de estado em países como o Níger. Dúvidas houvesse, a guerra na Ucrânia não é um facto isolado, um rasgo de loucura militarista de Putin. É «apenas» o aspeto hoje mais candente de um novo cenário internacional em que transitamos de uma ordem unipolar, em que um só imperialismo hegemonizava praticamente todo o sistema internacional de estados, para outra, marcada pela disputa de hegemonia, regional e global, por diversos atores emergentes. Isto muda as coordenadas do posicionamento da esquerda e os eixos da ação anti-imperialista.
o desafio é o de como lutar pela paz entre os povos e mover o eixo dos conflitos da luta entre estados para a luta internacional contra todos os senhores do mundo
Se no cenário anterior, de forma genérica, bastava colocarmo-nos no campo militar oposto ao da potência hegemónica, os EUA, hoje os dilemas são mais complexos. Assumindo que não cabe à esquerda internacionalista escolher o lado de potências capitalistas na disputa pelo globo (assunção que está longe de estar assente, mas que não explorarei aqui), o desafio é o de como lutar pela paz entre os povos e mover o eixo dos conflitos da luta entre estados para a luta internacional contra todos os senhores do mundo.
Há que fazê-lo sabendo que não bastam declarações genéricas pela «paz», de «guerra à guerra» ou mesmo de uma luta «contra todos os imperialismos». Estas abstrações servem bem para declarações fofas, mais ou menos mascaradas de intransigência, mas correspondem genericamente a uma recusa em se posicionar concretamente, acabando sempre por garantir que a esquerda nada tem a dizer de relevante aos povos sacrificados ― quando não levam mesmo à capitulação perante uma ou outra potência.
As linhas que se seguem não pretendem resolver este problema de forma definitiva. Além de posicionamentos programáticos gerais, as questões internacionais serão cada vez mais determinadas pela «análise concreta da situação concreta». O que almejo é a apenas revisitar alguns posicionamentos da esquerda anti-imperialista e revolucionária ao longo do século xx ― e até anteriores ― e, olhando para eles, alargar o arsenal tático e estratégico da luta anti-imperialista. Até porque, dada a influência no nosso imaginário político da Revolução de Outubro, que teve a paz como uma das suas bandeiras, opondo-se a todos os blocos imperialistas, há em parte da esquerda a tendência a transladar esse esquema para o mundo atual ― sempre que há uma disputa interimperialista, mesmo que como pano de fundo a uma agressão militar a uma nação dependente, haveria que ser neutro, como Lenin e Rosa Luxemburgo (supostamente) foram há 100 anos. Ora, esse está longe de ser o único ou sequer principal posicionamento adotado pelos internacionalistas ao longo da história...
A Segunda Guerra Mundial e as várias guerras que continha
Comecemos por rever o maior conflito militar da história da humanidade: a guerra de 1939-45, decididamente um grande conflito interimperialista. É sabido que, nesta guerra, a postura da esquerda, nos seus vários matizes, não foi de neutralidade. O Exército Vermelho, após um vergonhoso período inicial marcado pelo pacto Ribbentrop-Molotov, lutou, em unidade com os aliados, contra o Eixo. Comunistas e Socialistas, por todo o mundo, apoiaram esta unidade e, em cada país, levaram-na à prática. Nos países ocupados pelos nazis, uniram-se (muitas vezes também com monárquicos, conservadores e republicanos) na luta contra a ocupação, convergindo com os Aliados ― foi assim na França, Itália, Grécia e Jugoslávia. Nos EUA, por exemplo, os trotskistas, na mesma linha, exigiram a intervenção yankee na Europa e alistaram-se no exército, enquanto exigiam controlo dos sindicatos sobre o mesmo e se preparavam para se unir à resistência popular na Europa. Nos países colonizados, os posicionamentos foram mais variáveis (já lá iremos), mas temos o exemplo dos guerrilheiros etíopes (apoiantes de Halie Salassie) que fizeram unidade com os britânicos contra o exército italiano...
Ou seja: no maior conflito interimperialista mundial, as esquerdas, das mais reformistas às mais revolucionárias, tomaram parte ao lado das potências hegemónicas. Assumindo que foi correto ― alguém defenderá o contrário? ― resta saber porquê.
É útil recorrer à análise de Ernest Mandel1 sobre a Segunda Guerra Mundial. Segundo ele, esta guerra tinha um caráter múltiplo. Era: 1) uma guerra interimperialista; 2) uma guerra de agressão imperialista do Japão contra a China; 3) uma guerra de agressão contra um estado operário, a URSS; 4) uma guerra de libertação das colónias, nomeadamente africanas e asiáticas, contra as potências coloniais (maioritariamente do bloco dos aliados); 5) uma guerra de libertação dos povos ocupados e oprimidos pela expansão nazi na Europa (Grécia, Jugoslávia, França e até Itália).
Destas, só a primeira guerra não tinha um lado que combatia justamente e exigia a neutralidade. Já nas restantes, os internacionalistas tinham lado. Na guerra do Japão contra a China, alinhariam ao lado desta última; tal como ao lado da URSS contra a Alemanha; junto dos povos colonizados contra os impérios coloniais (de ambos os blocos imperialistas); e dos povos ocupados pelos nazis contra os ocupantes, inevitavelmente em unidade militar com burguesia imperialista chauvinista francesa e com exércitos imperialistas aliados.
O problema reside em que a divisão analítica da guerra em várias categorias é útil, mas, no campo de batalha, frequentemente, ela não existe. Os exércitos aliados que se empenhavam na injusta guerra interimperialista pelo domínio do mundo eram os mesmos que se viam na contingência de combater ao lado dos povos ocupados nas suas guerras de libertação e a facilitar ao exército vermelho a sua vitória contra Hitler. Nuances e conjunturas aparte, calhou, coincidiu, que o bloco imperialista dos aliados se visse obrigado, na persecução dos seus interesses espúrios de domínio imperial, a fazer unidade com o lado militar justo, progressivo, em várias destas guerras (e vice-versa). E nisto, coincidiu com os internacionalistas, seus inimigos mortais.
Foi por isso, e não por qualquer suposta natureza democrática do bloco imperialista aliado, que a esquerda anti-imperialista combateu ao lado dos aliados. Não o fez totalmente: quando os povos colonizados se levantaram contra os seus colonizadores, estiveram ao seu lado, coincidindo em muitos desses casos (na Índia, por exemplo) com os interesses do outro bloco imperialista, o Eixo.
A luta estratégica e central contra todos os imperialismos e, prioritariamente, contra o «seu próprio» bloco não impediu a esquerda de se posicionar. Ninguém diria hoje que não o deveria ter feito ― o que não só facilitaria a vida ao fascismo, como teria sido um certificado de inutilidade histórica.
Mas não foi só na Segunda Guerra...
Este «critério» ― na verdade, mais uma contingência do que um critério ― não foi exclusivo da Segunda Guerra, ainda que nela tenha sobressaído. Mesmo na Primeira Guerra Mundial, que na tradição socialista ficou lembrada como a referência no posicionamento dos internacionalistas numa guerra interimperialista, ou seja, como marco do antidefensismo, houve nuances. Recorro de novo a Mandel num caso em que ele revisitava a política de Lenine face à guerra de 1914-18:
Simplesmente não é verdade que a posição de Lenine possa então ser reduzida à fórmula: «Esta é uma guerra imperialista reaccionária. Não temos nada que ver com ela.» A posição de Lenin era muito mais sofisticada. Ele disse: «Há pelo menos duas guerras e queremos introduzir uma terceira.» (A terceira foi a guerra civil proletária contra a burguesia que, na realidade, resultou da guerra na Rússia.)
Lenine travou uma luta determinada contra as correntes sectárias dentro da tendência internacionalista que não reconheciam a distinção entre estas duas guerras. Ressaltou: «Há uma guerra interimperialista com essa guerra não temos nada que ver. Mas também há guerras de revolta nacional por parte de nacionalidades oprimidas. A revolta irlandesa é 100% justificada. Mesmo que o imperialismo alemão tente lucrar com isso, mesmo que os líderes do movimento nacional se liguem aos submarinos alemães, isto não muda a natureza justa da guerra de independência irlandesa contra o imperialismo britânico. O mesmo se aplica ao movimento nacional nas colónias e nas semicolónias, ao movimento indiano, ao movimento turco, ao movimento persa.»2 (negritos meus)
Mesmo em períodos anteriores, vemos que a posição anti-imperialista é mais «sofisticada» do que a pretensa neutralidade pacifista.
Por exemplo, aquando da guerra franco-prussiana de 1870, em que o imperialismo francês invade a Prússia (potência em ascensão, secundária, mas certamente «mais imperialista» do que a atual Ucrânia), os internacionalistas, liderados por Marx, apoiaram o lado militar dos prussianos desde que a sua guerra de defesa não se transformasse numa guerra ofensiva (o que veio a suceder, momento em que mudaram de posição)3. E até na gloriosa revolução negra do Haiti, no final do século xviii, o exército negro de escravos libertados, liderado por Toissant Louverture, integrou (não apenas fez uma unidade militar) o exército espanhol contra os opressores franceses ― dedicando-se depois a combater espanhóis e ingleses rumo à independência.4 Mesmo na Primeira Guerra Mundial, como Trotsky, assinala na sua História da Revolução Russa, os soldados bolcheviques, sem abandonar a luta pela paz e mesmo quando muitos soldados já se recusavam a combater, bateram-se mais do que ninguém pela defesa de Riga quando o exército alemão entrou na cidade. Quando, já após a Revolução de Outubro, a Alemanha interrompeu as negociações de paz e atacou a Rússia revolucionária, Lenin propôs ao Comité Central do seu partido uma resolução que dizia «Dar plenos poderes ao camarada Trotsky para aceitar a ajuda dos bandidos do imperialismo francês contra os bandidos alemães.»5 (Negrito meu.)
As lições da história
Ou seja, na guerra da Ucrânia, não é a primeira vez ― nem a segunda, nem a terceira ― que a esquerda se vê obrigada a, na sua defesa da autodeterminação dos povos, contra uma ocupação imperialista, fazer uma unidade militar, tática, temporária e contingente, com a potência imperialista rival. Não há nenhuma «regra de ouro» que diga que, em nenhum momento, os internacionalistas se alinham com qualquer potência imperialista. Ou que alinham ao lado das potências emergentes contra as hegemónicas ― critério que hoje justificaria uma aproximação à China; na Segunda Guerra, à Alemanha; e na primeira, aos EUA...
Poderíamos daqui concluir que, com o advento do imperialismo, a maioria (se não todas) as guerras têm um caráter combinado. Haverá poucos (ou nenhum) conflitos interimperialistas que não despoletem guerras de libertação nacional ou outras formas de guerra justas em que é preciso tomar parte.
Ao mesmo tempo, poucas (ou nenhuma) guerra de libertação nacional ou pela autodeterminação se dará sem ser perpassada por interesses, ajudas, intervenções e tentativas de cooptação imperialista. A separação pura entre guerras justas e injustas, entre aquelas que merecem a escolha de um lado ou que exigem a neutralidade da nossa parte, torna-se assim mais complexa. Assim, frequentemente, o apoio militar a um lado justo, progressivo ou revolucionário da contenda implica a unidade temporária e condicional, em diversos graus, com um bloco imperialista.
Este mesmo critério ilumina o posicionamento atual do Bloco de Esquerda na guerra da Ucrânia ― que pode naturalmente ser debatido, mas que se encontra, como se prova acima, dentro da tradição da luta anti-imperialista. Noutros conflitos futuros, o mesmo critério pode levar a posicionamentos aparentemente «opostos» ― por exemplo, em Tawain, se as provocações dos EUA se aprofundarem.
Central é manter um posicionamento estratégico contra todos os imperialismos, apostado em fazer da guerra entre nações, luta entre classes, apoiando incondicionalmente a luta de povos ocupados pela sua autodeterminação. São estes os únicos critérios universais que nos legaram mais de 200 anos de luta anti-imperialista, de Louverture a Mandel.
A luta pela «paz» no abstrato, a pura equidistância nos conflitos, pode soar bem, mas serve muitas vezes como embrulho embelezador da capitulação a alguma potência. E não apenas às ditas «emergentes». Basta lembrar que sinistras figuras como Kissinger6 , Elon Musk ou Trump também defendem a «paz» na Ucrânia, sacrificando a autodeterminação do povo em troca de uma divisão de influências entre potências. Se (esperemos que não!) o Partido Republicano ganhar as próximas eleições, os pacifistas de hoje podem ver-se em estranha companhia amanhã. Fica o alerta.
Notas:
1Ernest Mandel (1923-1995) foi um dirigente e teórico marxista belga, um dos principais nomes do trotskismo do pós-guerra. De famílias judias e envolvido na luta clandestina contra a ocupação nazi, foi feito prisioneiro e preparava-se para ser transferido para para Auschwitz. Evadiu-se antes e voltou a juntar forças à resistência. Após a guerra destacou-se como economista e como uma das principais figuras do marxismo antiestalinista.
2 «Trotskyists and Resistance in the Second World War» https://internationalviewpoint.org/spip.php?article800 ― tradução minha.
3 Sobre estes acontecimentos, Marx, no seu A Guerra Civil em França, cita uma resolução dos operários alemães, cujo país havia sindo invadido, em que afirmar ««Somos adversários de todas as guerras, mas, antes de tudo, das guerras dinásticas... Com pena e dor profundas vemo-nos forçados a entrar numa guerra defensiva como um mal inevitável».
4 Para conhecer melhor esta grandiosa revolução negra, há que ler o clássico Black Jacobins de CLR James.
5 Citado na autobiografia de Leon Trotsky, Minha Vida.