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Combate à precariedade: para além do PREVPAP

“Combate à precariedade”. O que é que isso significa, afinal? A pergunta é ainda mais pertinente quando, agora, tal expressão tem suporte legal a propósito dos “precários do Estado”.

“Combate à precariedade”. É uma expressão que já se tornou corrente e que ouvimos não apenas a sindicalistas e outros representantes dos trabalhadores, a políticos, a governantes. Também ao cidadão comum, na rua, no autocarro.

Portugal foi em 2016 o terceiro país da União Europeia com mais trabalhadores (23%) contratados com vínculo precário. A tal não é alheio o facto de, desde a instituição do “contrato de trabalho a prazo”, a legislação laboral entretanto publicada ter, objectivamente, facilitado (e até promovido) progressivamente a contratação de trabalhadores com vínculos precários

O que é que isso significa, afinal? A pergunta é ainda mais pertinente quando, agora, tal expressão tem suporte legal a propósito dos “precários do Estado”.

No Orçamento de Estado (OE) para 2016i (e depois, melhor explicitado, no OE 2017ii) o Governo assumiu o propósito de definir e pôr em prática uma “estratégia plurianual de combate à precariedade”.

No desenvolvimento dessa estratégia, resolveu “iniciar, até 31 de Outubro de 2017, um programa de regularização extraordinária dos vínculos precários na Administração Pública (PREVPAP)”iii. E, mais recentemente, estabeleceu “os procedimentos de avaliação de situações a submeter a esse programa.iv.

Terminou no dia 30 de Junho o prazo para os “precários do Estado” apresentarem os respectivos requerimentos no contexto deste programa.

De acordo com a inerente regulamentação, há ainda necessidade de vários desenvolvimentos contratuais e processuais para que, de acordo com o compromisso assumido pelo Governo, em 2018 sejam integrados como trabalhadores permanentes (“efectivos”) nos quadros de pessoal do Estado todos os trabalhadores que estejam a desempenhar na administração pública e no sector empresarial do Estado funções permanentes ao abrigo de contratos a termo resolutivo, contratos de prestação de serviços, contratos de bolsa, contratos de estágio profissional, contratos de utilização de trabalho temporário ou intermediados em situação de falso outsourcing.

Ninguém duvida que tal estratégia e programa terão os necessários desenvolvimentos, até porque o assunto está na ordem do dia da atenção sindical, social e política.

Contudo, mesmo admitindo a concretização plena desse desiderato, será “só” isso o que ao Estado compete fazer quanto ao “combate à precariedade”?

A esta estratégia e programa, está sobretudo subjacente o pressuposto do Estado como Empregador ou, no caso da subcontratação ou outsourcing, como Utilizador. Porém, quanto à questão do “combate à precariedade” (e não só), outras qualidades do Estado há que podem (devem) ser consideradas.

Uma das outras qualidades do Estado que o Governo assume com o “combate à precariedade” é a do Estado-Serviço Público.

Seja em que actividade for, não é possível dissociar as condições de trabalho das condições de produção (produto ou serviço) e, logo, da produtividade, qualidade, prontidão e segurança do resultado que esse trabalho visa.

a precariedade das relações de trabalho, fragilizando as condições de trabalho de quem concretamente presta esses serviços, pode diminuir, como de facto muito vezes diminui, a qualidade, segurança e prontidão dos serviços públicos

Ora, quando nos serviços públicos estão em causa “produtos” ou serviços com a abrangência e responsabilidade pública como é a saúde, a educação, a segurança social, a segurança pública, o ambiente, etc., não pode o Estado deixar de reflectir (e agir) na “estratégia de combate à precariedade” o pressuposto de que a precariedade das relações de trabalho, fragilizando as condições de trabalho de quem concretamente presta esses serviços, pode diminuir, como de facto muito vezes diminui, a qualidade, segurança e prontidão dos serviços públicos.

Mas uma qualidade do Estado que, em matéria de precariedade ou qualquer outra não é certamente possível omitir é a do Estado – Legislador.

Como consta de um recente relatório do Eurostat (divulgado em 2/5/2017), bem como do último Livro Verde das Relações Laborais, para além dos “precários do Estado”, em geral (incluindo o sector privado), Portugal foi em 2016 o terceiro país da União Europeia com mais trabalhadores (23%) contratados com vínculo precário (contratos de trabalho a termo ou contratos de trabalho temporários). Ora, a tal não é alheio o facto de, desde a instituição do “contrato de trabalho a prazo” (em 1976)v, e, depois, do contrato de trabalho temporário (em 1989vi), a legislação laboral entretanto publicada (Códigos do Trabalho de 2003 e 2009 e, sobretudo, as alterações deste último em 2011, 2012 e 2013) ter, objectivamente, facilitado (e até promovido) progressivamente a contratação de trabalhadores com vínculos precários, pela via do contrato de trabalho a termo e temporário.

“Urge alterar a legislação laboral portuguesa no sentido de restringir a contratação a termo e o trabalho temporário

Assim, nesta qualidade do Estado-Legislador, uma das perspectivas da “estratégia de combate à precariedade” que carece de ser reflectida é a que já foi sustentada no Público pelo Dr. Fausto Leite, especialista em Direito do Trabalho: “Urge alterar a legislação laboral portuguesa no sentido de restringir a contratação a termo e o trabalho temporáriovii.

Mas uma outra importante qualidade do Estado que tem que ser ponderada quanto ao “combate à precariedade” é, sem dúvida, a do Estado – Regulador.

As estatísticas oficiais da precariedade laboral, como todas as estatísticas, não expressam toda a realidade neste domínio. É que, para além delas, é preciso ter em conta muitas situações de precariedade informal e ilegal que não estão considerados nesses números oficiais, tanto mais que, nestas condições, as consequências profissionais, pessoais e sociais desta condição laboral são ainda mais nefastas.

muita empresa há em que todos, mas todos, os trabalhadores estão considerados como contratados a termo ou por contrato de trabalho temporário

De facto, muita empresa há em que todos, mas todos, os trabalhadores estão considerados como contratados a termo ou por contrato de trabalho temporário. Contudo, quanto a muitos deles, não obstante essa contratação aparentar reunir os requisitos legais, não respeita as condições formais (por exemplo, quanto à inexistência ou insuficiência do “motivo” da contratação) ou substantivas (porque não respeitam o número limite de renovações ou de duração do contrato ou porque, enfim, de facto, ocupam postos de trabalho permanentes, com sucessivas substituições no mesmo posto de trabalho) legalmente previstas.

ao definir e pôr em prática a regularização das situações ilegais de trabalhadores precários a trabalhar na AP e empresas públicas, pelo exemplo de legalização que com isso dá para o sector privado, o Estado está já, de certo modo, a assumir a condição de regulador

Claro que, ao definir e pôr em prática a regularização das situações ilegais de trabalhadores precários a trabalhar na AP e empresas públicas, pelo exemplo de legalização que com isso dá para o sector privado, o Estado está já, de certo modo, a assumir a condição de regulador.

Mas, por outro lado, a progressiva (des)regulamentação (diminuição ou, até, eliminação) de direitos dos trabalhadores nas relações de trabalho (e que ainda não foi devidamente revertida, com as consequências de que também alertou mais recentemente no Público o Dr. Fausto Leiteviii) fragilizou nestas a posição dos trabalhadores. E essa condição é, de facto, um forte impeditivo da regulação pela via da (auto)exercitação dos direitos pelos próprios trabalhadores.

Na realidade, a condição de contratado a termo, como trabalhador temporário ou como “trabalhador independente” (vulgo “recibo verde”, que frequentemente dissimula uma real relação de trabalho por conta de outrem), inibe, por medo (não fujamos à palavra) de perda de permanência contrato, nos locais de trabalho, a mobilização individual e colectiva (incluindo pela via da sindicalização) dos trabalhadores no sentido da reivindicação e exercitação dos seus direitos. E, mesmo, retrai-os na denúncia da violação desses direitos às autoridades competentes (inclusive à ACT) e aos tribunais.

A desregulamentação de direitos dos trabalhadores, para além da eventual eliminação ou diminuição destes, é assim, ainda, perversamente, (também) causa de desregulação social nos locais de trabalho

A desregulamentação de direitos dos trabalhadores, para além da eventual eliminação ou diminuição destes, é assim, ainda, perversamente, (também) causa de desregulação social nos locais de trabalho. No domínio das relações e condições de trabalho, como noutros, a desregulamentação (por acção ou omissão) anda sempre muito associada à desregulação.

O que também se reflecte numa outra vertente do Estado – Regulador, a do controle público das relações e condições de trabalho, designadamente, no que respeita à missão, e acção da Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT).

Ora, não obstante essa estratégia e programa de combate à precariedade já integre algo quanto a tal, é de facto imprescindível que isso se concretize em adequadas e suficientes competências e meios (e estratégia) da ACT. Não só pela vertente organizacional propriamente dita deste serviço público (mais inspectores do trabalho e mais meios materiais) mas, também, pelo ponto de vista do Estado-Legislador, quanto ao reforço de inerentes competências inspectivas que (melhor) operacionalizem e tornem (mais) eficaz e eficiente a acção da ACT.

Isto porque, a acrescer à dimensão e dispersão das situações de precariedade ilegal e suas consequências, mais imediatas ou mais diferidas (de que há que destacar as que se relacionam com condições de segurança e saúde do trabalho), a referida fragilização dos trabalhadores nas relações de trabalho, objectiva e subjectivamente, dificulta nos locais de trabalho, a eficácia e a eficiência da acção da ACT.

A análise (e sobretudo a acção) da “estratégia de combate à precariedade”, para ser coerente e consequente, precisa de mobilizar também estas outras qualidades do Estado que não apenas a de Empregador.

Em conclusão, as qualidades (responsabilidades) do Estado relativamente ao “combate à precariedade” vão muito para além do PREVPAP.


i Nº1 do Artº 19º da Lei Nº 7-A/2016, de 30 de Março, que aprovou o Orçamento de Estado para 2016.

ii Artigo 25º da Lei 42/2016, de 28 de Dezembro, que aprova o Orçamento de Estado para 2017.

iii Resolução do Conselho de Ministros Nº 32/2017, de 9/2/2017 (DR-I série, de 20/2/2017).

iv Portaria Nº 150/2017, de 3 de Maio.

v Decreto-Lei 781/76, de 28 de Outubro.

vi Decreto-Lei 358/89, de 17 de Outubro.

vii Artigo “O combate desigual `à precariedade”- Público de 20/5/2017 https://www.publico.pt/2017/05/20/economia/noticia/o-combate-desigual-a-precariedade-1772771

viii “A mudança na legislação laboral” – Público, 7/8/2017 https://www.publico.pt/2017/08/07/economia/noticia/a-mudanca-da-legislacao-laboral-1781402

 

Sobre o/a autor(a)

Inspector do trabalho aposentado. Escreve com a grafia anterior ao “Acordo Ortográfico”
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