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Coitados dos velhos liberais

Os velhos liberais que se cuidem, o seu tempo passou. A milícia das propostas liberais está agora na extrema-direita.

O Parlamento da Andaluzia, governado pela aliança da direita tradicional com a extrema-direita, o Vox, formou uma comissão para discutir a recuperação pós-covid. O relatório da comissão apresenta uma ambiciosa proposta fiscal, com redução de despesas (excluindo pessoas do equivalente ao rendimento de inserção), ao mesmo tempo que quer abater receitas (abolindo o imposto sobre o património). A primeira medida era de esperar. Há anos, a direita portuguesa insistiu no mesmo, sobretudo pela voz do CDS, que agitou a imagem dos beneficiários do RSI que se atreviam a entrar num café, ou multiplicou a lenda dos Mercedes à porta das barracas. Isso deu votos, mas ainda não estávamos no tempo das redes sociais e, por isso, a revelação do escândalo dos pobres que viveriam à nossa custa reduziu-se a umas inflamações para os telejornais. O truque renasceu mais recentemente com a ciganofobia de Ventura, mais explícita do que nas vozes passadas de Monteiro e Portas e, por isso, mais potente. Para ser racista, é melhor ser racista e meio.

No entanto, é a segunda proposta que pode provocar surpresa. Abolir o imposto sobre o património? Tratar-se-ia de um rombo nas finanças públicas, em particular arruinando as autarquias, mas sobretudo de uma alteração de fundo na política fiscal. É bom dizer que os impostos sobre o património, casas e propriedades são hoje um pálido resquício do que chegaram a ser e, sobretudo, do que prometiam ser. Alguns países europeus impuseram, por décadas, impostos sobre as fortunas, que também incluíam outras formas de património, usando-os também como instrumento de verificação das declarações de rendimentos. Tudo isso foi arrasado por governos de direita e, manda a verdade, também sociais-democratas, que entendiam que nos novos tempos devem resguardar-se as fortunas do incómodo de alguma progressividade fiscal. O que, em todo o caso, nenhum destes sistemas fiscais se atreveu a tributar foi a fortuna financeira, tornando-se regra favorecer caritativamente os dividendos e mais-valias como se fossem a boia de salvação dos seus desvalidos proprietários. Mesmo assim, chegar-se agora ao extremo de propor o fim do imposto sobre o património é um salto quântico no Fisco. Percebe-se o alcance, favorece um pouco os proprietários de casas remediadas, ao mesmo tempo que provoca o júbilo dos milionários que procuram desde há muito esta benesse, dado que aplicam parte dos seus dinheiros em palácios.

Trump foi mais direto, reduziu a taxa sobre os grandes rendimentos, mas também não se esqueceu de aliviar o seu imposto patrimonial (ele próprio beneficiou disso). Foi uma festa. Portanto, é normal que outras extremas-direitas o sigam. Conseguem assim dois objetivos: criar a sua clientela, a quem prometem vantagens fiscais sólidas, e mostrar vontade de destruir os pilares da democratização do Fisco, que são os instrumentos de progressividade. Só que, ao fazê-lo, deslizam para uma plataforma política que é distinta da da extrema-direita histórica. Esta era nacionalista e estatista, prometia um poder que subordinasse a sociedade, anunciando querer controlar a economia com mão de ferro. Agora, mostra-se como um supermercado de favores: opõe-se à nacionalização da TAP, desejando beneficiar os planos da Lufthansa; promete vender o serviço de saúde, para promover a finança privada; quer acabar com a escola pública, os pais dos meninos que paguem. Ou seja, a extrema-direita candidata-se a ser o braço armado do liberalismo. E isto nunca se viu.

A oportunidade está à vista. Depois de décadas de desregulação, privatizações, precarização do trabalho, mordomias fiscais, subsídios e parcerias público-privado, vai-se impondo uma constatação: tanto não bastou para recuperar a disciplina social, a punção do trabalho, a rentabilidade financeira. Chegou por isso a vez da convocação dos rufias para martelarem a liberalização ou até para varrerem os impostos sobre os milionários. Os velhos liberais que se cuidem, o seu tempo passou. A milícia das propostas liberais está agora na extrema-direita.


Artigo publicado no Expresso, 29 de agosto de 2020

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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