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Coisas de gajas

Ao ritmo a que estamos atualmente, na evolução das desigualdades entre os géneros, só daqui a 81 anos é que essas desigualdades terão desaparecido completamente. Infelizmente, sim, este assunto, da desigualdade, é mesmo uma coisa de gajas.

“A violência não afeta só as mulheres, os comportamentos violentos perpetrados por mulheres não devem ser considerados adequados, diminuídos ou esquecidos. Este cartaz é muito tendencioso”. “Isto não são coisas de gajas, lá estão vocês a querer fazer campanhas só para alguns e a esquecer-se que as mulheres já estão em pé de igualdade, deviam ter o mesmo cartaz para homens.” Estes são dois comentários de D. e M., homens e jovens, no mural do meu Facebook, quando, a propósito do 8 de Março, Dia Internacional da Mulher, publiquei uma foto do cartaz que faz parte de uma campanha já antiga do Bloco, “A violência não faz o meu género”, em que uma jovem mulher está encostada à parede, de costas voltadas, em posição de defesa.

O que se comenta nas redes sociais, em geral, não me incomoda, porque reflete tantas vezes ideias feitas ou estereotipadas da sociedade, é caixa de ressonância da opinião publicada, sem grande critério ou reflexão critica. Há muito comentário sexista, machista, racista, populismo a rodos, muita reatividade.

Ser mulher hoje, em Portugal, é ser ainda mais desigual e ter menos direitos

Mas o que me irritou especialmente nestes comentários é que refletem uma ideia falsa, que consiste em nivelar tudo por igual, e assim menosprezar as campanhas e as lutas de mulheres e homens contra a violência exercida sobre as mulheres, com o argumento de que “os homens sofrem do mesmo, portanto não se queixem!”.

Não, não é verdade que deveríamos ter o mesmo cartaz para homens. Simplesmente porque não é verdade que o fenómeno da violência doméstica toque a todos por igual.

É óbvio que muitos homens também são alvo de violência, física ou psicológica. Mas também não é verdade que, perante a sociedade, estes tenham a mesma capacidade de denúncia, de reação, de protesto, de proteção, de resposta.

E é por isso que nos concentramos no elo mais fraco da cadeia. É por isso que são necessárias e sempre urgentes campanhas públicas em defesa das mulheres, vítimas de violência doméstica, hoje mais do que nunca, como o demonstram os números mais recentes sobre esta realidade.

Porque é exatamente de desigualdade entre homens e mulheres e do seu agravamento que estamos a falar quando pomos o dedo na ferida e gritamos ou pintamos muros contra da violência doméstica. Porque, na verdade, e os números não mentem, ser mulher hoje, em Portugal, é ser ainda mais desigual e ter menos direitos.

Em termos de diferenças salariais, Portugal foi também o país em que a austeridade teve como consequência o maior aumento das desigualdades entre homens e mulheres. Para ganhar o mesmo que um homem, uma mulher trabalha mais dois meses e meio que um homem com a mesma função

De acordo com o relatório anual do Fórum Económico Mundial de 2014, as desigualdades entre homens e mulheres agravaram-se em Portugal nos últimos quatro anos. Este documento que analisa 134 países, e aborda fatores como a participação na economia, o sucesso educacional, a saúde e o poder político, diz-nos que, em 2010, Portugal ficou na 32ª posição do ranking da igualdade de género.

Em 2014, com a análise a ser feita sobre 142 países, Portugal desceu de nível e passou a ocupar o 39º lugar no ranking das diferenças entre géneros, a uma larga distância da Islândia, no primeiro lugar, e sendo ultrapassado por países como o Burundi, Lesoto e Moçambique, que ocupa a 27ª posição.

Se nos detivermos no indicador do poder político, percebemos que é aquele em que as diferenças entre homens e mulheres mais se fazem sentir, tanto em Portugal como no mundo. Portugal obtém uma pontuação de 0,212, o que coloca o país em 44º lugar do ranking neste indicador, mostrando que, face a 2010 e 2011, houve um retrocesso.

Em termos de diferenças salariais, Portugal foi também o país em que a austeridade teve como consequência o maior aumento das desigualdades entre homens e mulheres. Para ganhar o mesmo que um homem na mesma função, uma mulher trabalha mais dois meses e meio.

O ranking de 2014 do Fórum Económico Mundial é liderado por países do norte da Europa: Islândia, Finlândia, Noruega, Suécia e Dinamarca ocupam as cinco primeiras posições. No fundo da tabela, estão países como o Iémen, o Paquistão, o Chade e a Síria.

Ao ritmo a que estamos atualmente, na evolução das desigualdades entre os géneros, só daqui a 81 anos é que essas desigualdades terão desaparecido completamente e as mulheres conseguirão o mesmo nível de vida dos homens.

Infelizmente, sim, este assunto, da desigualdade, é mesmo uma coisa de gajas.

P.S.

1. No passado dia dia 8 de Março o Bloco pintou um mural contra a violência doméstica, na Amora, Seixal.

A Catarina Martins lembrou que este ano faz 15 anos que o Bloco apresentou a proposta para tornar a violência doméstica crime público, que se tornou lei. As 43 mulheres assassinadas em 2014 lembram-nos todos os dias o longo percurso que ainda temos a percorrer para acabar com este flagelo.

2. O blogue “Maria Capaz” lançou uma campanha contra a violência domestica com um vídeo-choque intitulado “No amor só o coração bate”, aqui http://mariacapaz.pt/cronicas/no-amor/ É mesmo brutal, chocante, chega a ser repugnante. Tal como a violência doméstica deveria ser vista por todos.

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Jornalista
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