Na década de 1950, Amália cantava: «Coimbra é uma lição/De sonho e tradição». Três quartos de século depois, a tradição foi mercantilizada e o sonho transformou-se num modernismo bacoco. Embora mais tarde do que as duas metrópoles nacionais, também Coimbra entrou numa espiral de gentrificação e "turistificação". Também a velha capital do Reino se transformou num produto para ser consumido lá fora, toda ela "very typical", amalgamando num mesmo pacote o fado, os estudantes, D. Pedro e Inês, o Airbnb e o brunch do meio-dia. Muito se podia dizer sobre a crescente dualidade entre a cidade dos turistas e a cidade dos cidadãos, mas um resumo exemplar pode ser retirado de dois eventos que marcaram o início do novo ano. A primeira semana de 2025 ficou marcada pelas notícias que davam conta de que o The New York Times havia eleito Coimbra como um dos 52 destinos a visitar no ano que agora se inicia. O periódico estadunidense descreve a cidade como "bastião da tradição" que tem sido poupado às multidões que invadem Lisboa e Porto. Escassos dias depois, Coimbra voltava a merecer a atenção dos meios de comunicação social nacional, reportando o anunciado encerramento definitivo da estação ferroviária central – a estação de Coimbra A. Desde dia 12 de janeiro, a ligação ferroviária à cidade faz-se exclusivamente à estação de Coimbra B, localizada às portas da cidade. O transporte dali para o centro passa agora a ser feito por autocarro.
Não pode pedir-se caricatura mais perfeita do caminho que tem sido traçado para o país, em geral, e para a maior parte das cidades portuguesas, em particular. Na década de 40, o geógrafo Orlando Ribeiro escrevia que Portugal se contava "entre os grandes produtores de gente", destacando emigração crónica que caraterizava o país. O Portugal do séc. XXI, continuando a produzir "gente", aprendeu a produzir "experiências", transformando-se ele próprio num produto. Toda a cultura nacional, bem como a beleza natural, a gastronomia e até o trato das gentes, se transformou num bem de consumo. As nossas cidades são palco privilegiado desse processo, cada vez menos pensadas para servir os que lá vivem e cada vez mais metamorfoseadas em simulacro de si mesmas, para o turista ver e comprar. Como efeito colateral, o espaço urbano foi-se alheando cada vez mais dos cidadãos.
Nas cidades de pequena e média dimensão, como é o caso de Coimbra, este alheamento tem-se manifestado sobretudo no domínio da mobilidade urbana. As cidades portuguesas estagnaram algures na viragem do século, apresentando sistemas de mobilidade vergonhosos e obsoletos. Onde existem (o que, em muitas zonas do país, já é um luxo), estes sistemas não servem as pessoas: a circulação é insuficiente, verificando-se sobreocupação aguda especialmente nas horas de ponta; a rede é territorialmente desadequada, não cobrindo trajetos efetuados por significativas camadas da população (a localização das escolas, por ex., é muitas vezes ignorada); e o material circulante está envelhecido, mal cuidado e é de acesso difícil a pessoas com mobilidade reduzida. Este panorama, que sempre seria lastimável, é particularmente incompreensível no segundo quartel do séc. XXI, em que a aposta em modelos de mobilidade coletiva e limpa são mais urgentes do que nunca.
O caso de Coimbra é paradigmático. O novo sistema de mobilidade da cidade, há décadas prometido e só agora concretizado, encontra-se em construção. À semelhança de outras cidades do país, a aposta foi no modelo "Metrobus", um sistema operado por autocarros que circularão em vias autónomas. Será também este sistema que irá substituir a ligação entre as estações de Coimbra B e Coimbra A, trazendo os passageiros ferroviários para o centro da cidade.
Além das inúmeras queixas que a população tem manifestado a respeito do projeto Metro Mondego, o encerramento da Estação Nova (como era conhecida a estação de Coimbra A entre os conimbricenses) representa o pináculo da negligente política de transportes que tem sido implementada na região. Décadas de desmantelamento de ligações ferroviárias culminam agora no desmantelamento da única ligação interna na maior cidade da região centro. A contracorrente com o resto do mundo, continua a destruir-se a pouca ferrovia de que a região dispõe e, pior ainda, a sugerir o transporte rodoviário, ainda que coletivo, como alternativa. Uma região que merecia uma robusta rede ferroviária, uma vez que as deslocações diárias entre vilas e cidades são o quotidiano de significativa parte da população, chegou ao ponto de até as ligações internas serem encerradas. Os milhares de pessoas que todos os dias chegam à cidade de comboio para trabalhar vêm-se agora forçados a uma dupla jornada de transporte, mais desconfortável, mais morosa e menos eficiente. Juntam-se aos outros milhares de pessoas que nas últimas décadas se viram abandonadas pelo comboio, em virtude do desmantelamento de linhas, limitação dos horários e subida dos preços.
Estas opções, além de representarem um retrocesso civilizacional, colocando as cidades portuguesas a anos-luz das cidades europeias, têm um duplo impacto no tecido social da região. Por um lado, contribuem para o imparável aumento do número de veículos automóveis em circulação, tornando a cidade perigosa e poluída e contribuindo para a exaustão e mal-estar dos cidadãos. Por outro lado, trata-se de opções fundamentalmente discriminatórias, que afetam em especial as populações mais vulneráveis, nomeadamente os habitantes dos subúrbios ou das vilas e aldeias circundantes e os estudantes de fora.
Coimbra é hoje uma lição de desumanização da cidade. Enquanto se transforma numa colossal montra de si mesma, mercantilizando a sua história e tradições, mergulha num processo de "modernização" completamente alheado das reais necessidades das pessoas. O encerramento da Estação Central, escassos dias depois de o The New York Times elogiar a "alma" da cidade, é exemplo paradigmático disso mesmo.
Artigo publicado em Sabado a 19 de janeiro de 2025
