Olhar para quem olha e comenta o hipotético crime de Ronaldo é exercício cruel e assustador para quem preza um fio de coerência. Entrando a frio, a única constância de opinião sente-se nos grunhos, aqueles que acham que a mulher que entra num quarto é para se deitar ao tapete, ao serviço do refastelado e belo prazer do macho. Esses, executam o seu movimento favorito, não saem de cima. Porque é mesmo assim e é para o que é, desempenho e eficácia, e é para o que algumas servem, e só não são todas porque se safa a mãezinha. Esses são os coerentes, por muito que custe. Umas bestas.
Depois temos a barricada dos não selvagens, aqueles ou aquelas que, do lado certo da história, raramente deixam de sentenciar liminarmente qualquer comportamento reprovável que gravite entre o medíocre ou o hediondo. A receita é a mesma, servida em plataformas e pratos sem paninhos quentes. Revolta colectiva, definições preliminares de carácter, orgulho contra o esbulho, sentenças prévias e liminares de culpa. Mas tinha que aparecer agora um português acabado de ceder o trono-sempre-Real para Modric, Cristiano Ronaldo de seu nome, para provar que é mesmo o maior do Mundo a gerar consensos entre progressistas. Até a gerar fundadas dúvidas em quem sempre teve certezas. Pois assim é que deveria ser sempre. Viva Portugal e a relatividade porque culpados só em flagrante delito. É com melancolia que a coerência do passado cai por terra do lado certo da história. Mas ao perceberem a dimensão das caças às bruxas são bem mais capazes de olhar e esperar para ver: os progressistas fazem progressos por muito que custe às bestas.
Eu não sei se Ronaldo é culpado, eu não sei se Mayorga tem fome de fortuna. Eu não sei se Bolsonaro pode separar irmãos entre Portugal e Brasil ou se pode fazer de Trump um mal menor. Eu não sei se Assunção Cristas deve ser crucificada por tomar banho em pelota ou por preferir paradas gay a estados alterados de percepção. Eu não sei se Mário Cunha Reis pode fazer o par perfeito com Abel Matos Santos ao assumirem a sua Tendência no CDS (mas desconfio que sim). Eu não sei se racistas e xenófobos podem pedir legitimamente congressos no PSD sem que se ponha em causa a social-democracia. Sei agora que vale a pena esperar para não correr o risco de julgar os outros pela minha avaliação moral e dos bons costumes, cortando cabeças pela minha sentença e, subitamente, desatar a pensar que é crime. Sobre a irritante mania das conclusões urgentes, declaro-me farto. Sinto-me muitíssimo progressista, a construir uma nova coerência, a pedir meças aos brutos. E, agora, até com mais companhia.
Artigo publicado no Jornal de Notícias, 5 de outubro de 2018