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A classe conta

Na passada terça-feira, os jornais davam conta de um estudo divulgado pela Associação Americana de Psicologia segundo o qual as “pessoas de classe social mais alta pensam exageradamente que são melhores que as outras”.

Conduzido por cientistas dos Estados Unidos e de Singapura e envolvendo mais de 150 mil participantes, a investigação verificou não apenas os padrões de reprodução social mas também o excesso de “autoconfiança” e a percepção que as pessoas com mais rendimentos têm de serem mais competentes que as outras. Peter Belmi, o responsável do estudo, explica na nota pública que o divulgou que “a classe social molda as atitudes que as pessoas têm sobre as suas próprias competências e capacidades e isso, por sua vez, tem importantes implicações no modo como as hierarquias de classe se perpetuam de uma geração para outra”.

O estudo aponta para duas coisas interessantes, mesmo que não sejam novas. Por um lado, não são só os próprios que se acham superiores, são também os outros que acreditam nisso e que os olham assim. Ou seja, o que parece condiciona verdadeiramente o que é. A errada percepção de superioridade dos próprios produz uma percepção distorcida nos outros e a reprodução dessa hierarquia. Por outro lado, esta dimensão subjetiva da classe (traduzida no modo como as pessoas falam, se apresentam, como inscrevem no corpo toda a sua experiência vivida e “herdada”, como reagem perante os outros, como ocupam o espaço, como se comportam perante as situações) não é só consequência das desigualdades económicas. É consequência, sim, e é ainda causa, na medida em que ajuda a reproduzir essas desigualdades. Também por isso é tão difícil romper o ciclo sem mudar toda a estrutura que o produz.

Uma outra notícia, também desta semana, apresentava um projeto chamado Future Scenarios, que pode ser visto no Porto até dia 2 de julho, de Lena Dobrowolska e Teo Ormond-Skeapin. A dupla de fotógrafos aborda, a partir de cinco países diferentes, a vulnerabilidade e a responsabilidade dos humanos pelas alterações climáticas. O trabalho expõe a “lenta violência” que atravessa as relações de poder entre as economias ditas “desenvolvidas” e as outras. As economias que mais contribuem para a destruição do planeta – constatam os artistas – são as que teriam os melhores recursos para as combater, mas são também as que menos têm feito no sentido da mitigação ou da adaptação, por se encontrarem “presas num estado de apatia política”. As mais pobres são, paradoxalmente, as que têm partilhado mais práticas concretas e mais conhecimento sobre a adaptação, investigação das perdas e danos, energias renováveis e descarbonização da economia. A conclusão não é difícil de tirar. As principais vítimas das alterações climáticas são os mais pobres. Quem mais sofre com a destruição climática é quem menos polui e é quem mais tem feito para a combater.

Parece claro que o olhar sobre a emergência climática, como sobre muitos outros grandes problemas que enfrentamos, não pode ser desligado da economia política que regula as relações entre países e, dentro destes, as relações entre classes. Se é bem certo que o planeta é só um, o lugar territorial e social que habitamos e de onde o olhamos faz toda a diferença. Também por isso, os movimentos que combatem esta catástrofe se designam, cada vez mais, não apenas como “ambientalistas” mas como movimentos pela “justiça climática”. É impossível abordar com alguma profundidade os temas da ecologia sem os relacionar com a questão da desigualdade e do capitalismo. E o mesmo poderia ser dito de outros problemas, também atravessados pela mesma clivagem de classe e por outras formas de desigualdade e de dominação (como a racialização ou o género). Sem essa dimensão, sem essa interseccionalidade, podemos ter formas de representação e a criação de mercados para uma nova sensibilidade emergente, mas não teremos mudanças de paradigma.

Há uns vinte anos, uma certa moda intelectual procurou iludir-nos com a ideia de que as clivagens de classe tenderiam a ser cada vez mais secundárias. Não foram poucos os que se empenharam a contrariá-la, através de trabalhos memoráveis, como o que dá o mote para o título deste texto: o livro do sociólogo norte-americano Erik Olin Wrigth, “Class Counts”. Essa moda felizmente morreu. Cada vez mais, volta a ganhar terreno a centralidade destas desigualdades para compreendermos o mundo, combinadas com outras que resultam da articulação entre patriarcado, capitalismo e colonialismo, seja no campo das ciências sociais, no campo artístico ou no campo dos movimentos sociais. Resta saber se, para lá da constatação da sua importância, e da capacidade de as ler e de as representarmos intelectual, artística e politicamente, temos capacidade de superá-las. No fundo, e para utilizar uma expressão do francês Luc Boltanski, resta saber até que ponto, sabendo isto, conseguimos mesmo “tornar a realidade inaceitável” – provavelmente a primeira condição para transformá-la.

Artigo publicado em expresso.pt a 14 de junho de 2019

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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