Cinquenta anos de história: 25 de Abril sempre!

porJoão Fraga de Oliveira

12 de abril 2024 - 22:33
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O que o descontentamento social reclama não é “um ajuste de contas com a história”, mas a concretização das expectativas legitimamente criadas e alimentadas pelo meio século de democracia.

“Um ajuste de contas com a história”. Esta, a frase ouvida numa entrevista televisiva a um líder partidário (André Ventura, presidente do partido Chega – RTP3 -20/3/2024), caracterizando o resultado do seu partido nas eleições legislativas do passado dia 10 de Março.

Não surpreende a arrogância política implícita nesta frase. Mas não tanto pela votação conseguida nestas eleições pelo partido do seu autor, o terceiro mais votado. O que, mais estrutural, retira surpresa por tal arrogância é o facto de tanto ela ser conforme à linha da postura política (programa, comportamentos, retórica) desse partido, da qual esse seu líder é bem expressivo, como mais uma vez se notou agora no processo de eleição do presidente da Assembleia da República.

É até dispensável questionar a sustentação de tal postura político-partidária quanto ao resultado eleitoral, pois que, se bem que não seja democraticamente questionável o seu reconhecimento formal, foi notório o que neste influiu uma campanha eleitoral em que preponderou a demagogia, a incongruência, a incoerência e a inconsistência económica, social e política das propostas desse partido, de mais a mais não devidamente filtradas por uma comunicação social informada e isenta e, até, agravadas por muita desinformação e mesmo mentiras empoladas e generalizadas nas redes sociais e mesmo em órgãos de comunicação social.

Dir-se-á, com razão, que o resultado eleitoral que induz tal arrogância política também resulta do quanto lhe esteve na base o aproveitamento político-eleitoral do descontentamento de muitos eleitores, para além de com outros factores menos essencialmente políticos (em que não estão em causa os referenciais democráticos mas sim, por acção ou omissão, a sua subversão por parte de quem deles mais responsabilidade tem em ser seu guardião exemplar), com as suas condições de trabalho e de vida.

E é certo que, ainda que se argumente poder haver muito de subjectivo (por, como já se referiu, carência de informação suficiente e isenta ou mesmo desinformação) nesse descontentamento, não pode deixar de se lhe reconhecer objectividade e fundamento em muitos domínios das condições de trabalho e de vida das pessoas, que, então na condição de cidadãos e eleitores, o expressaram em 10 de Março como legítimo voto de protesto, por mais que se argumente este ter sido mais emocional e influenciado do que racional.

Sim, é certo que falta mais igualdade social em geral, em especial, com discriminação positiva apoiada em justiça e segurança social, a quem, por condição física, mental, etária, familiar, cultural, étnica, migratória, social ou económica, mais vulnerável é. O que é indissociável da necessidade de mais segurança no acesso pronto e com qualidade à saúde pública, isto é, nisso decisivo, de mais e melhor capacidade do Serviço Nacional de Saúde na prestação pronta de cuidados de saúde. E também de mais e melhor educação assente na Escola Pública, tal como de melhor acessibilidade e mais qualidade e prontidão da Justiça. Ainda, de mais efectiva concretização do direito a habitação digna e economicamente acessível.

Além disso, mais geral e transversal, admite-se como não alheio ao resultado dessas eleições o descontentamento com as condições de emprego e de trabalho (nomeadamente, melhores salários), na medida em que estas centrais e determinantes nas condições de vida em geral.

Contudo, se assim é, o que tal descontentamento social reclama como resposta política não é “um ajuste de contas com a história” mas, pelo contrário, um reconhecimento e exigência de efectiva concretização das expectativas quanto a essas condições de trabalho e de vida legitimamente criadas e alimentadas por essa história de meio século de democracia, mormente com as referências políticas do que lhe deu origem: a Revolução de 25 de Abril de 1974.

Então, aqui e agora, agora neste mês de Abril de 2024 em que se completa um meio século dos mais marcantes da história contemporânea de Portugal, importa registar (para repudiar) a opinião de um líder partidário ao considerar o resultado de umas eleições livres (que são a essência da democracia que o dealbar desse meio século, em 25 de Abril de 1974, nos garantiu) como “um ajuste de contas com a história”.

Tendo em conta o quanto o que humana, social e politicamente critica ou propõe o seu partido colide com muito do essencial dos princípios e valores subjacentes à Revolução de Abril de 1974 e à democracia instituída (nomeadamente pela Constituição da República Portuguesa) a partir desses princípios e valores, tal caracterização só pode estar a referir-se à história deste último meio século de democracia.

Não. O que está em causa, para os portugueses, não é um “ajuste de contas com a história”.

O que está em causa, sobretudo neste mês dos 50 anos do 25 de Abril, é uma reafirmação do que é a essência desta história mais recente: a democracia.

É certo que, passado meio século de história democrática iniciada com a Revolução de Abril de 1974 que o (nos) possibilitou, ver constituída uma Assembleia da República em que o terceiro partido com mais deputados se vangloria de tal ser um “ajuste de contas com a história” suscita (exige) uma reflexão (acção) sobre as razões Politicamente maiúsculas e politicamente “minúsculas” deste (novo) “estado a que chegamos”.

Contudo, passados estes cinquenta anos, mesmo tendo em conta o actual contexto económico, social, político e mesmo geopolítico, por mais utópicas que nos pareçam (se não tanto a quem viveu conscientemente esse período, a quem, porque mais jovem ou por qualquer outra razão, não o viveu) as proclamações e expectativas de democracia e de “liberdade a sério” (“paz, pão, habitação, saúde, educação …”) de 25 de Abril de 1974 o que está em causa não é o “ajuste de contas” com essa vivência e expectativas sociais e políticas mas o seu aprofundamento, desenvolvimento e alargamento.

Como alguém escreve num livro recente, “tantas vezes, a utopia só não se atinge porque, na viagem, nos apeamos demasiado cedo.” (Álvaro Laborinho Lúcio – A Vida na Selva, 2024).

Daí que continua a ter sentido, mais sentido ainda neste 25 de Abril de 2024, aquela proclamação com uma história de há 50 anos: Vinte e Cinco de Abril, sempre!

Artigo publicado em publico.pt a 6 de abril de 2024

João Fraga de Oliveira
Sobre o/a autor(a)

João Fraga de Oliveira

Inspector do trabalho aposentado. Escreve com a grafia anterior ao “Acordo Ortográfico”
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