Cinco notas sobre as eleições legislativas

porFernando Rosas

17 de março 2024 - 17:41
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A situação exige às esquerdas portuguesas concertação e diálogo para agir em conjunto, para defender o essencial, para abrir caminhos novos.

1 Os resultados das eleições legislativas do passado dia 10 de março expressam uma clara viragem à direita e à extrema-direita na situação política do país, sendo a sua força principal o crescimento da extrema direita racista e fascizante (18% dos votos e 48 deputados). O impacto deste resultado nos partidos centrais do sistema político foi imediatamente visível. À queda brutal do PS (perde meio milhão de votos, maioritariamente transferidos para a extrema-direita, e 43 deputados) e à estagnação da direita tradicional (a AD tem votação inferior ao PSD em 2022), ou seja, ao impasse global do centrismo, juntam-se os sintomas de desagregaçãoi. A direita do PS conspira e pressiona para levar a nova direção a uma política de colaboração e viabilização do governo da AD, jurando que não se trata de ressuscitar o “bloco central”. E a direita do PSD intriga e confabula para obrigar Montenegro a um qualquer entendimento (de governo, parlamentar, extra-parlamentar…) com a extrema-direita, sob pena de, mais cedo do que tarde, o derrubar a favor de quem com ela se alie. Escusado será dizer que qualquer uma destas soluções significa entregar, a curto prazo, a hegemonia do poder político, com ou sem repetição de eleições, à extrema-direita autoritária e antidemocrática. É igualmente um exercício de pueril manigância pensar que a extrema-direita é exteriorizável ao quadro político pós-eleitoral e que, não contando com ela (!?) a esquerda parlamentar ultrapassaria em deputados a AD e a IL. A realidade que sai das eleições é a de um bloco maioritário de regressão política e social integrando a direita tradicional e a extrema-direita, com forte pressão hegemónica da parte desta como força ascendente. É perante esse quadro político que a esquerda se deve entender e definir como resistência e como alternativa.

2 É sabido que a emergência da extrema-direita fascizante é um fenómeno internacional que agora se afirma com exuberância em Portugal. Na realidade, vivemos na Europa, e não só, a segunda crise histórica dos sistemas liberais do ocidente e do modelo de economia e sociedade pautado pelo longo monopólio rotativo no poder dos partidos do centro do sistema político. Transformados em partidos de gestão da crise do capitalismo neoliberal, a social democracia europeia e as formações da direita tradicional tornaram-se cúmplices do rasto de impiedade social, desigualdade, discriminação, regressão económica e social, por ela causado. Criaram um oceano de frustração, animadversão, abandono, medo, uma amálgama de protesto desencantado facilmente manipulável pela demagogia bufónica e mentirosa da extrema-direita. Se, historicamente, em Portugal, os partidos sustentáculos desse “centrão” pantanoso e neoliberal foram, cada um à sua maneira e só episodicamente em conjunto, o PSD e o PS, a verdade é que, em termos imediatos, a presente viragem à direita é o fruto de dois anos desastrosos de maioria absoluta do PS (após o corte com a “geringonça”). Neles se cruzaram o compadrio, as promiscuidades público-privado, a desagregação governativa, com a incapacidade de responder à crise do SNS, de defender a Escola Pública e os direitos dos professores, ou de apresentar um vislumbre de política de acesso à habitação para quem não a consegue pagar com o seu salário. “Contas certas” foi o manto diáfano que encobriu a política estrutural de baixos salários e a recusa persistente de reverter a legislação laboral ditada pela troika. É no terreno social do descontentamento alargado com a governação da maioria absoluta do PS que se pode entender a pesada derrota eleitoral deste partido e a tendência geral da votação.

3 O voto na extrema-direita é um voto complexo e contraditório que merece ser analisado com atenção. Se o observarmos, mesmo que sumariamente, do ponto de vista da sua estrutura social e política talvez possamos encontrar quatro votos principais. Em primeiro lugar, o voto de parte significativa dos grandes interesses que financiam (legal e ilegalmente) o partido da extrema-direita. Como é já bem conhecido, nele encontramos os descendentes do velho capital financeiro (Champalimaud, Mello, Ricciardi – Espírito Santo) com grandes empresários do turismo, da especulação imobiliária, da distribuição. São, provavelmente, a verdadeira alma do partido.

Em segundo lugar, o voto do velho e do novo fascismo. Os nostálgicos do salazarismo, os que passaram pelo MDLP ou os neofascistas formados pela doutrinação de Alain de Benoist e da Nova Direita francesa, exilados até agora no CDS, no PSD, na abstenção ou nos grupúsculos fascistas sem expressão eleitoral e que agora descobriram o seu partido.

Em terceiro lugar, um certo voto juvenil masculino (18-24 anos), puritano, homofóbico, antifeminista, reacionário, que julga encontrar no machismo trauliteiro e bufónico da extrema-direita, ou nos miríficos triunfos solitários do mercado, a solução para as frustrações, impasses e dificuldades com que as misérias do capitalismo neoliberal o confronta.

Em quarto lugar, e principalmente, essa maré de voto de protesto desinformado de pequenos e médios proprietários, de empregados do setor terciário, de precários, de desempregados, de gente abandonada e marginalizada com o seu direito à saúde, à habitação, ao trabalho com salário digno, à escola pública fortemente restringido pelas políticas dominantes. Um longo setor que sai da abstenção ou do voto no PS (ou, em menor grau, no PSD) e se tornou vulnerável à manipulação demagógica dos instintos primitivos, à argumentação racista e xenófoba contra o imigrante (o bode expiatório, aquele que é mais fraco e mais desarmado do que os fracos e desarmados que a extrema-direita atiça contra ele). Só há uma maneira de à esquerda se responder a este abalo. É lutar pela aplicação de políticas que resolvam a curto prazo os problemas mais instantes de injustiça social e distributiva. É combater e denunciar as políticas racistas, homofóbicas e antifeministas, que contribuem para sustentar e reproduzir a extrema-direita. É secar o seu apoio social e político.

4 À esquerda do PS, o Bloco de Esquerda melhorou a sua votação, apesar das distorções à proporcionalidade do voto fazerem com que 46% dos votos desse partido não se traduzam em mandatos. Segurou, no entanto, o seu grupo parlamentar.

Os novos deputados do Livre compensaram as quebras da CDU e, no seu conjunto, a esquerda à esquerda do seu PS ganhou um novo deputado e melhorou a sua votação. Resistiu ao terramoto e, espero eu, há-de estar junta, na sua diversidade, para os tempos difíceis que aí vêm.

5 É, sem dúvida, uma dolorosa e paradoxal coincidência estarmos a celebrar os cinquenta anos do 25 de Abril numa conjuntura marcada pelas mais sérias ameaças à democracia social e política desde a queda do regime fascista. Esta é uma situação que exige às esquerdas portuguesas concertação e diálogo para agir em conjunto, para defender o essencial, para abrir caminhos novos. A primeira ocasião que se oferece para tal são as manifestações do cinquentenário de Abril. Possam elas ser uma grande e massiva demonstração da vontade do povo português em não permitir qualquer recuo no que tanto custou a conquistar.

iResultados antes do apuramento dos votos da emigração.

Fernando Rosas
Sobre o/a autor(a)

Fernando Rosas

Historiador. Professor emérito da Universidade Nova de Lisboa. Fundador do Bloco de Esquerda
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