Está aqui

A chave da política

A chave da política portuguesa dos últimos dois anos está precisamente aqui, não há surpresas, não há inquietações maiores, não há desespero.

Imagine que esteve uns dias sem ler jornais nem saber nada do nosso país, nem internet nem televisão. Chega hoje a sua casa, liga o mundo e fica a saber que Marcelo deu uma longa entrevista. Tem então duas possibilidades: ou lê o que se diz sobre a entrevista, ou lê a entrevista. O problema é que nenhuma delas lhe vai assegurar uma interpretação tranquila e consensual.

Se ler a entrevista, vai-lhe parecer a recapitulação do que o presidente disse ao longo de ano e meio sobre todos os grandes assuntos: que os objetivos do défice são para cumprir e ir mais além, que é preciso mais crescimento, que há estabilidade política, que a maioria deve entender-se e não deve pregar sustos, que as forças armadas são uma peça chave, que o mundo dos negócios deve ser protegido, que é preciso investimento, que a desgraça de Pedrógão exige soluções.

A bem dizer, não há uma novidade esfusiante, não há uma surpresa, não se adivinha uma inflexão – e é por isso mesmo que os marcelólogos se esforçam em descortinar subtilezas no tom e em gestos reveladores da alma do presidente, pouco mais lhes resta. Faltou a ameaça, faltou o caso, faltou a bordoada, faltou a intriga.

Por isso, se, em vez de ler a entrevista, ler os comentários, talvez descubra umas entrelinhas subtis, como o faz o Expresso, e pouco mais. Mas, vai-se a ver, mesmo as entrelinhas são uma desilusão, não são? Que Passos Coelho está perdido, que não haverá dissolução do parlamento, que continuará a usar o mesmo estilo porque é assim que prefere, nada de novo.

Marques Mendes, tido como um oráculo de Belém, acentua a distanciação. “Subtil e velada”, diz ele. “Mas deixou de ser o que às vezes alguns apelidavam de ‘porta-voz do Governo'”, acrescenta, numa frase cheia de carambolas: não nos diz que Marcelo foi o “porta-voz” do governo, ele nunca diria tal coisa, mas que “alguns” assim o chamavam; portanto, o presidente, que não é “porta-voz do governo”, vai deixar de ser o que “alguns” designavam como “porta-voz do governo”, portanto erradamente. Ou seja, não precisaria de deixar de ser o que não é, pois não? É tudo “subtil e velado”.

Perante tão velada subtileza, os outros comentadores dividem-se. O diretor do DN, entrevistador, puxa pelos galões e acentua a interpretação mendiana: foi o “momento de Marcelo”, separaram-se as águas. No i, o mesmo: “a lua de mel acabou”. No Observador, regozijo: agora quem manda é Belém, regime presidencial. No PÚBLICO, o editorial afirma o contrário, foi um tédio, o presidente está “perdido no seu labirinto”.

Afinal, o que ficamos a saber, quer leiamos a entrevista quer leiamos os comentadores? Rigorosamente o que já sabíamos antes. Ora, a chave da política portuguesa dos últimos dois anos está precisamente aqui, não há surpresas, não há inquietações maiores, não há desespero. Ao contrário dos comentadores que se amofinam com a modorra nas declarações do presidente, eu leio nelas a perceção de que o país prefere viver sem sustos; ao contrário dos que se encantam com as ameaças que descobrem nos não-ditos, eu vejo continuidade.

O que Marcelo e Costa perceberam, cada um à sua maneira, é que o modo da sua política deve estabelecer uma diferença marcada com o passado recente. Marcelo separa-se de Cavaco, que interpretava a austeridade melhor do que ninguém (e por isso se perdeu, com a lamúria sobre a sua pensão) e Costa separa-se do tempo da troika e do PSD e CDS (e por isso se perderam, com a sua gula de empobrecerem o país). Isso é totalmente óbvio na sua linguagem: ao contrário de Passos, que se passeia como se fora um primeiro-ministro no exílio e à espera de poder desembarcar no Terreiro do Paço, zangado com o mundo que o esqueceu, Costa sorri e é uma pessoa normal, enquanto Marcelo corre o país a acarinhar o povo.

De facto, ambos perceberam um segredo que pouco mais gente partilha: é que na política há dois mundos e dois tempos bem separados. Um é o frenesim de políticos e jornalistas, das grandes intrigas e das grandes frases (os suicidados de Pedrógão, ou que vivemos sob um governo totalitário porque o Ministério Público não juntou a senhora atropelada à outra lista das vítimas diretas da tragédia!), outro é o da gente normal, que prefere que lhe garantam que não vão ser reduzidas as pensões dos nossos pais e que quer ver esforço para resolver as muitas dificuldades da sua vida.

Quem vive na esfera da publicidade entusiasma-se com nada; em contrapartida, quem percebe a dessintonia entre esses dois mundos tem na mão a chave da política.

Parece portanto que esses mundos não estão a falar um com o outro. Pois não, só um deles fala para as pessoas, o outro fala para si próprio. Quando o PSD e o CDS desistem de acusar o governo de afundar a economia do país (o diabo) e passam a dizer que os bons resultados são sua obra perpétua, ou quando passam da exigência de continuidade dos cortes em salários e pensões para o protesto contra a “austeridade” que recupera os rendimentos do trabalhador e do reformado, percebe-se ao que leva este efeito de bolha em que se prende a política da direita.

O presidente e o primeiro-ministro, tão diferentes que eles são, percebem ambos que essa política da direita partidária lhes dá todo o espaço do mundo, precisamente porque se colocam noutra esfera, que é a da comunicação simples com as pessoas que vivem dificuldades. As sondagens assim o confirmam.

Artigo publicado em blogues.publico.pt a 1 de agosto de 2017

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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