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Casos e casinhos, ou como ser governado por uma casta

Deixou de ser preciso demonstrar como se gera esta bolha de favorecimento, os factos falam por si, mesmo que seja notório que o Governo tem um medo instintivo desta evidência e prefira a vaga de demissões.

É demasiado fácil, embora verdadeiro, ver nesta vertigem de minirremodelações governamentais a prova do pudim da maioria absoluta e da impunidade dos governantes na escolha de gente que lhes chega medalhada pelo partido (Miguel Alves) ou pelo trânsito meteórico entre empresas (Alexandra Reis). Deixou de ser preciso demonstrar como se gera esta bolha de favorecimento, os factos falam por si, mesmo que seja notório que o Governo tem um medo instintivo desta evidência e prefira a vaga de demissões a uma polémica impopular. A declaração do primeiro-ministro sobre os “casos e casinhos”, essas maléficas inventonas das oposições, é deste modo engolida com fel em cada um destes episódios, que chegam a ser desconcertantes de tanta prosápia e cumplicidade. Deixando o nevoeiro sempre capitoso destes casos, proponho-vos a tese de que isto não é o resultado de erros ocasionais, é antes a prova da natureza do nosso regime social, o resultado de uma construção meticulosa de redes de poder, ou de como uma casta se incrustou no uso do Estado. Essa casta é o passado de Portugal e quer ser o nosso futuro.

Um passado que nos morde

Malgrado a polémica historiográfica, vou tomar como aceitável a tese de que a emergência da burguesia moderna se fez em Portugal, ao longo do século XIX, ancorada numa aliança entre o capital comercial e a propriedade fundiária, sob a tutela do Estado. Daí terá resultado um conservadorismo arreigado, expresso, nomeadamente, na frágil industrialização e na fantasia imperial, vista como uma protegida reserva de acumulação de capital. Ao chegar à segunda metade do século XX, este sistema radicalizou-se na Guerra Colonial, mas, entretanto, ia mudando por dentro, seja pela consolidação da fusão entre a banca e o imobiliário, com a urbanização e a primeira turistificação, seja pelo impulso europeu, sobretudo na finança. Como este processo foi brevemente interrompido pelo 25 de Abril e depois recomposto com uma nova concentração de capital, é útil estudar como têm sido produzidos os governantes.

Com dois colegas, João Teixeira Lopes e Jorge Costa, publicámos, em 2014, um livro, “Os Burgueses”, que estudava esses processos. Um dos capítulos dedica-se a uma investigação detalhada do perfil de todos os ministros e secretários de Estado de todos os Governos constitucionais até ao ano anterior, 776 pessoas (mas de 78 não conseguimos dados). Queríamos perceber como a hegemonia da burguesia sobre a economia e a reprodução social seleciona os governantes. E, para isso, observámos a sua trajetória pessoal, tendo registado que, se bem que uma parte deles tivesse chegado ao Governo vinda do Parlamento ou de funções públicas e sem ligação empresarial anterior, o facto mais notável era a passagem posterior para as chefias de empresas. Assim, se só 89 chegaram ao Governo vindos de administrações, quase metade dos governantes emigrou para o topo de empresas da finança (248) e imobiliário (95). Naturalmente, trata-se de cargos estratégicos: 170 desses governantes foram para grandes grupos económicos, 107 para os que gerem parcerias público-privado. Nestes casos, a casta foi formada pela cooptação económica que consolidou um novo estatuto social. O seu circuito fundamental tem sido partido-Governo-empresas.

Os outros caminhos para Roma

Chegar ao topo destas empresas, seja como facilitador com o partido, seja para abrir uma nova carreira, não é de somenos. Quando, há anos, propus no Parlamento uma lei que determinava que os pagamentos aos administradores de empresas cotadas fossem publicados no relatório anual, e era difícil recusar que esta informação era um direito dos acionistas e do público, o presidente de um grande banco, cuja administração se fazia pagar um prémio de 10% dos resultados líquidos, veio indignar-se e garantir que, se a lei fosse aprovada, haveria uma revolta social. Para os beneficiados, com ou sem revolta, a promoção vale a pena.

No entanto, a formação de ligações de casta também segue outros caminhos. Há a corrupção e, se alguns casos têm sido investigados, ainda teremos de esperar pelo dia em que um qualquer Rui Mateus conte as ligações angolanas de financiamentos de alguns partidos e outras tropelias. O processo sobre os pagamentos do BES a Manuel Pinho arrasta-se em tribunal, bem como outros. Há ainda os vínculos do financiamento declarado: em 2021, o IL recebeu dinheiro do CEO da EDP, que os Champalimauds e Mellos pagaram ao Chega e que o PS continua a receber donativos da gente fiel da Mota Engil.

As redes de compromisso são as mesmas que levaram tantos ex-governantes a ocupar posição nas empresas das PPP. Por isso a defesa extravagante dos vistos gold, dos benefícios a não-residentes, de que a EDP não pague imposto pela venda de barragens, tudo merece ser visto à luz da casta que ocupa e ocupará estes lugares.

Alexandra Reis não inventou nada. Reclamou para si a regra que protege os gestores, se forem despedidos recebem tudo (há mesmo quem chame a isto meritocracia?). Passou da TAP para a NAV e desta para o Governo, tendo sido escolhida pela experiência brevíssima nestas empresas, aliás mal sucedida numa delas. Disso benefi­ciou, achando que começaria uma carreira política sem que alguém questionasse o privilégio daquele pagamento. Nisso cometeu o erro de exibir a arrogância da casta. Mas a regra não mudou nem mudará, pois não? Pois esperemos pelo próximo casinho.

Artigo publicado no jornal “Expresso” a 30 de dezembro de 2022

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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