A casa era uma ideia adquirida, uma materialidade básica e necessária para a vida, para a saúde, para a dignidade, para a existência em sociedade, em família, entre pessoas amigas.
Embora a vivência da casa, como espaço concreto, seja múltipla, tem traços comuns suficientes para que toda a gente perceba o que se quer quando se diz: “casa para viver”. Um espaço com paredes, teto, chão, dimensões suficientes para o número de pessoas a que dá abrigo, que não seja insuportavelmente quente no verão ou extremamente fria no inverno. Um espaço que seja baía da intimidade ou mesmo, quando necessário, um refúgio da dimensão pública da vida. Muitas vezes é também um espaço de lazer e convívio, ou até um espaço de trabalho. É o espaço da família, onde pessoas nascem e morrem (embora cada vez menos em sentido literal), onde as pessoas se amam, onde as pessoas crescem, onde se acolhem novos elementos de quatro patas, onde as pessoas sonham, olhando para além da janela…
Agora, confrontamo-nos com uma realidade violenta: a casa é cada vez mais uma incerteza, roçando já por muitas vezes o privilégio. A casa foi mercantilizada, tornada bem exportável, sem que fosse garantida a sustentabilidade da vida de cada pessoa e da saúde social do país. A casa está em crise. Colocar a existência deste espaço em causa, é colocar tudo o resto que lhe é associado em causa. São vidas que não acontecem, projetos mantidos em suspenso, saúde no fio da navalha, sonhos que não são sonhados.
Numa outra escala, numa sociedade que se tem construído ao longo dos séculos num equilíbrio entre a esfera privada da vida e a sua natureza pública, tornar a casa uma incerteza é ameaçar a coesão social, é arruinar o umbral, tornando a casa a rua e a rua a casa.
Umbral (um·bral)
1. Peça lateral de uma porta.
2. [Figurado] Ponto de passagem para o interior ou o início de algo (ex.: o umbral da idade adulta). = ENTRADA, LIMIAR
"umbral", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2023, https://dicionario.priberam.org/umbral .
O umbral é precisamente a mediação entre a casa e a rua, é, talvez por isso, a parte mais importante da casa – que nada seria se nela não pudéssemos entrar, parece óbvio, mas também não seria casa se dela não pudéssemos sair para a rua, para o espaço de toda a gente, estar com toda a gente, ser gente. A rua, de resto, não existe por si mesma, é construída nesta dinâmica em que passamos pelo umbral da porta para ser no espaço público.
Posto isto, neste ponto do tempo em que nos encontramos, em que o inusitado está a acontecer, em que ‘casa’ está lentamente e subrepticiamente a deixar de ser uma ideia adquirida, em que nos querem fazer querer que defender o direito à habitação como um direito basilar é absurdo - é fundamental romper pelo umbral fora!
De resto, romper pelo umbral fora não é mais que entrar pelo umbral da casa comum, da rua, da praça, em sentido mais amplo, do próprio planeta. Sair pelo umbral é já uma luta pela sobrevivência. Pela nossa, mas também pela sobrevivência de quem virá no amanhã e pela sobrevivência do próprio planeta, pois o mesmo sistema que ameaça o direito à habitação, empurra-nos todos os dias mais um pouco para a catástrofe climática. Um sistema capitalista que normaliza as desigualdades e naturaliza a preponderância do lucro face a tudo o resto.
Pela ideia de casa, pela sua materialidade, pela liberdade de atravessar o umbral, pela liberdade de construir rua: dia 30 é dia de afirmar que casa é para viver e que para a vida é fundamental a casa.
