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Os salários teriam de crescer na mesma proporção da produtividade e da inflação para que pudessem ser protegidos. Ao rejeitar fazê-lo, a opção do Governo estabelece a marca inaugural da maioria absoluta: 2022 será um ano de empobrecimento para o trabalho e de maior rendimento para o capital.

Os salários teriam de crescer na mesma proporção da produtividade e da inflação para que pudessem ser protegidos, sem contribuir para a espiral em curso. Ao rejeitar fazê-lo, a opção do Governo estabelece a marca inaugural da maioria absoluta: 2022 será um ano de empobrecimento para o trabalho e de maior rendimento para o capital.

O 1.º de Maio foi a data simbolicamente escolhida pelo primeiro-ministro para divulgar a sua mensagem: “vamos prosseguir o objetivo de reforço do peso dos salários no PIB para a média europeia”, afirmou António Costa num tweet, ilustrado por um gráfico que mostrava a disparidade entre Portugal e a Europa (no nosso país os trabalhadores ficam com 46% da riqueza produzida, a média europeia é de 48%). Passados dois dias, contudo, era a própria ministra da Presidência, Mariana Vieira da Silva, a reconhecer no Parlamento que, com a proposta de Orçamento do Estado para este ano, haveria não um progresso mas “um recuo” nesse objetivo do Governo. Perante uma inflação que galopa, a opção de não avançar com qualquer aumento intercalar de salários e pensões significará um maior desequilíbrio naquela distribuição.

As contas já tinham sido feitas. Considerando que o Governo prevê no Orçamento que os salários reais vão recuar 0,8%, embora a produtividade vá aumentar 3,5% no mesmo período, então o peso dos salários no PIB cairá 4,3%. Será “a maior transferência de rendimento do trabalho para o capital a que já assistimos em Portugal no século XXI”.

É uma escolha definidora. A ideia de que a prioridade da política económica é reduzir o défice (sob o mantra das “contas certas”) e de que, perante a subida de preços, se deve olhar para os salários como um custo a conter (como se fossem eles a causa da espiral inflacionista) é uma receita que tem um efeito certo: a contração dos rendimentos de quem trabalha. Ou seja, é uma política de empobrecimento, porque o seu efeito é a redução real dos salários face ao aumento do custo de vida. Num contexto, sublinhe-se, em que o Governo entendeu não controlar margens de lucro (a Galp aumentou em 496% os lucros no primeiro trimestre deste ano, por exemplo) e em que a inflação, ao aumentar os preços, fará crescer as receitas fiscais do Estado.

As justificações para esta opção assentam em hipóteses que estão muito longe de se encontrar demonstradas. O surto de inflação tem a sua origem na especulação com a energia, e não no crescimento da procura. Como explica este relatório, o aumento dos preços na produção e comercialização de combustíveis, bem como nos mercados de carbono, é uma realidade anterior à invasão da Ucrânia e o caso português é um bom exemplo de combinação de rendas excessivas, lucros ilegítimos e preços especulativos. Ora, se são os custos da energia a principal causa da inflação, e não os salários, procurar conter a sua espiral pela compressão do rendimento de quem trabalha, em vez de controlar preços e de dar passos para controlar a própria produção energética, é uma política de desigualdade.

As consequências desta orientação são previsíveis: mais pobreza, mais concentração da riqueza, com as famílias mais pobres a serem as mais penalizadas pelo aumento de preços dos bens essenciais. Nem o aumento do salário mínimo, superior em percentagem aos míseros 0,9% da Administração Pública (que depois acabam por funcionar como referência para o sector privado), permitirá aguentar o embate. O Governo sustenta esta opção na ideia de que aumentar salários alimentaria a inflação. Mas essa relação de causalidade não é nenhuma lei da teoria económica.

Se a inflação não foi provocada por aumentos salariais acima da produtividade, se não resulta de haver mais poder de compra do que capacidade de produção, mas sim de um aumento dos preços da energia (e do efeito de arrasto que tem nos outros bens), então atacar a inflação devia passar precisamente pela contenção daqueles preços e das respetivas margens. Aumentos salariais que acompanhassem o aumento da produção não exerceriam uma pressão inflacionista.

Pelo contrário: os salários teriam de facto de crescer na mesma proporção da produtividade e da inflação para que pudessem ser protegidos, sem contribuir para a espiral em curso. Ao rejeitar fazê-lo, a opção do Governo estabelece a marca inaugural da maioria absoluta: 2022 será um ano de empobrecimento para o trabalho e de maior rendimento para o capital.

Artigo publicado em expresso.pt a 10 de maio de 2022

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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